Extensa entrevista com Manuel Carvalho da Silva, coordenador do Polo de Lisboa do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Publicamos hoje a primeira das três partes que a constituem.O antigo secretário-geral da CGTP deixa avisos ao PS e à maioria parlamentar de esquerda, fala do combate aos baixos salários e à precariedade e diz que Portugal ficou “claramente pior” depois das reformas negociadas com a tróica. Em entrevista ao Jornal Tornado, Manuel Carvalho da Silva lembra ainda que existem alternativas ao neoliberalismo, “mais solidárias”, “mais eficientes”, “e até mais lucrativas”
“Cuidado! Ou há evolução na qualidade do emprego, ou grandes vagas de desemprego ressurgirão”
Jornal Tornado: O primeiro-ministro elegeu o “emprego digno” e com “salário justo” como o grande desígnio para 2018. Que conselho dá ao Governo para que cumpra a prioridade de ter “mais” e “melhor emprego”?
Carvalho da Silva: Pensar o que poderá ser um emprego digno obriga a pensar a sociedade que queremos, desde o futuro da nossa economia ao estilo de vida das novas gerações. É tão simples e complexo como isso mesmo.
A desvalorização salarial, componente fundamental da desvalorização do trabalho – variável de ajustamento da economia tão utilizada pela Tróica e pelo governo Passos/Portas – é uma velha receita que, em Portugal, se sustenta em três aspectos fundamentais: i) numa deriva anti laboral que foi desarmando as regras que concediam algum equilíbrio a uma relação (por natureza desequilibrada) entre empregador-empregado; ii) em opções de política macroeconómica que, no quadro de normativos monetário-cambiais deram preferência ao cumprimentos de metas orçamentais, sem atender à situação concreta do país; iii) na ausência de opções claras de desenvolvimento económico saudável e robusto para o país. Foi tudo isso que ditou o emprego que temos em Portugal.
Que alterações defende como prioritárias?
O que fazer agora, em particular depois do depauperamento a que a sociedade portuguesa foi sujeita com o austeritarismo? Há necessidade imperiosa de se criar melhor emprego.
No curto prazo, há que, em primeiro lugar, recriar – com medidas pontuais mas incisivas – um edifício legal que reequilibre as relações laborais, assegurando: efectividade à negociação colectiva e articulação da sua dinamização com melhoria do Salário Mínimo Nacional (SMN); um papel do Estado mais ofensivo na regulação das relações laborais, que dê confiança e responsabilização aos patrões e sindicatos no incremento do diálogo e de negociação a todos os níveis; recentragem do papel da Concertação Social, deixando de se confundir o seu papel com o do Parlamento e engajando o Conselho Económico e Social (CES) na construção de uma nova visão para o desenvolvimento do país, que não seja apenas o de prestar de serviços de baixo rendimento; eficácia às instituições e aos instrumentos da Justiça Laboral; legislação específica e mais eficaz e práticas acutilantes de combate à precariedade; combate à desigualdade salarial.
Em segundo lugar, promover, em vários campos, políticas que travem a emigração dos jovens. A melhoria da remuneração do trabalho será seguramente uma delas.
Em terceiro lugar, articular crescimento económico com diversificação da economia, o que obriga a mais investimento e melhor orientação deste, e a situar as questões do aumento da produtividade mais no centro do debate laboral e político.
A versão diabólica difundida pelos partidos da Direita significa o apego que eles têm à inevitabilidade da financeirização da economia, da mercadorização do trabalho, da destruição do Estado Social, do escorraçar da juventude”
Colocar o Emprego no topo da agenda nacional foi também defendido por João Cravinho, antigo ministro socialista do equipamento. Um “Livro Branco para a Qualidade no Emprego” pode alterar algo na realidade laboral ou não passa de um mero paliativo?
Em geral, os Livros Brancos são elaborados com uma orientação política determinada. É com essa preocupação que são convidados os membros integradores das comissões que os elaboram que, como é natural, têm os seus pensamentos formados. Daí resulta que os livros brancos podem ir ao encontro do que é necessário, mas também podem resultar numa forma de apenas adiar politicamente problemas, de ganhar tempo. O máximo consenso político em torno de certas opções pode ser importante desde que seja dinâmico, que tenha base política coerente e progressista e não contorne a necessidade de a população se pronunciar, ou seja, tenha debate público.
Trabalho precário, mal pago e pouco qualificado. Assim continua o emprego em Portugal, conforme o estudo do Observatório sobre Crises e Alternativas, do qual o Manuel Carvalho da Silva é coordenador. Optar por este modelo de insegurança e fragilidade em vez do desemprego vai ser o futuro das novas gerações?
Não. Essa é uma opção errada e uma forma incorrecta de colocar o problema. Com a actual matriz de desenvolvimento, quem tem emprego hoje acabará mais tarde ou mais cedo no desemprego e será substituído por alguém que estava no desemprego. Essa é a forma de perpetuar a precariedade e os baixos salários. Desemprego e precariedade andam de mão dada e autoalimentam-se, à escala de um país à escala europeia ou à escala global.
A verdadeira alternativa é outra, é ter um emprego consistente, com razoáveis mecanismos de segurança e estabilidade – que até pode ter uma relação de estabilidade associada à perenidade do posto(s) de trabalho a que está ligado –, inserido numa justa divisão internacional e social do trabalho, devidamente remunerado e com direitos e deveres estabilizados.
A grande opção que as novas gerações terão diante de si, caso não abdiquem de abraçar o desafio de serem felizes e viverem em sociedades democráticas, é lutar por essa alternativa.
O actual enquadramento político-institucional europeu (…) foi feito para manter os países como o nosso em défices, dependentes e obedientes”
Para si é então possível inverter a tendência da precariedade e de baixos salários ou o “diabo” ainda pode vir aí?
A versão diabólica difundida pelos partidos da Direita significa o apego que eles têm à inevitabilidade da financeirização da economia, da mercadorização do trabalho, da destruição do Estado Social, do escorraçar da juventude.
Está demonstrado que é possível rechaçar essa receita, mas há problemas complexos pela frente.
Quais?
Designadamente: poder existir uma nova situação nacional de desequilíbrio financeiro; ressurgirem alguns constrangimentos que levaram à crise anterior. Portugal não conseguiu reduzir a dívida pública (porque inclusivamente foi agravada com o resgate). Se Portugal continuar com níveis medíocres de crescimento económico, que poderão rapidamente ser “comidos” por uma deriva nos mercados de capitais internacionais; se Portugal continuar a viver de uma economia frágil assente num turismo pouco qualificado que mal dá de comer a quem nele trabalha; se não houver mais investimento e diversificação da economia, é claro que estaremos perante novos grandes bloqueios.
O actual enquadramento político-institucional europeu torna o desafio difícil, porque esse enquadramento não foi feito para resolver este tipo de problemas. Muito pelo contrário, ele foi feito para manter os países como o nosso em défices, dependentes e obedientes.
Direi que os arautos do “diabo” são, afinal, o próprio diabo. É preciso manter esses arautos bem distantes do fundamental do poder.
Quando alertam para o “diabo”, no fundo gostariam que ele viesse quanto antes. Em 2011 abraçaram-no com a vinda do FMI e da tróica porque essas instituições trouxeram – como sempre – um programa liberalizador que tem como prioridade, não o bem-estar dos portugueses, mas antes o domínio de uma esfera privatizadora, a diminuição de salários e pensões, o aumento do desemprego e a perda de liberdade e de direitos sociais fundamentais.
Está muito pessimista…
É claro que há esperança. Contudo, está pela frente todo um trabalho de fundo que terá de ser feito para abordar a realidade em que nos encontramos de forma que todos os portugueses a conheçam e, a partir daí, entendam quais as verdadeiras opções que têm pela frente.