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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

Cavaco Silva e as suas teses sobre a Arte de Ser Primeiro-Ministro

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Aníbal Cavaco Silva, que foi primeiro-ministro dos X, XI e XII Governos Constitucionais e Presidente da República durante 2 mandatos lançou, no corrente ano de 2023, um livro com várias partes cuja primeira parte – O Primeiro-Ministro e a Arte de Governar, tem o título do livro e compreende os seguintes pontos; as competências do Primeiro-Ministro, a escolha dos ministros, a Presidência do Conselho de Ministros, as reuniões com os ministros, a avaliação dos ministros, as remodelações ministeriais, o Primeiro-Ministro e a União Europeia, a palavra pública e a atitude do Primeiro-Ministro, o relacionamento do Primeiro-Ministro com o Presidente da República, o Governo de coligação.

A publicação do livro, como se percebe aliás pela consulta dos textos que integram as restantes partes, visa fazer um contraponto com a “falta de arte” do actual Primeiro-Ministro António Costa que igualmente se encaminha para os dez anos de Governo. O texto da primeira parte invoca expressamente a Constituição da República Portuguesa anotada por Vital Moreira e Gomes Canotilho e há uma referência ao funcionamento do Governo de Francisco de Sá Carneiro, em que Cavaco participou como Ministro das Finanças e do Plano, e às orientações na altura estabelecidas pelo então Primeiro-Ministro.

No tempo em que Cavaco Silva foi Primeiro-Ministro era nítido que seguia um conjunto de orientações sobre a forma de governar, que não terão sido totalmente explicitadas na altura. Esta sua apresentação atribui um papel central à definição da estrutura do governo, que ele vê como uma prerrogativa do Primeiro-Ministro (mesmo se o Governo for de coligação e o parceiro minoritário deve ser ouvido sobre essa estrutura mas m não lhe é reconhecido o direito de a negociar). Também a escolha e avaliação dos ministros, de que o Primeiro-Ministro é o único responsável (ainda que num Governo de coligação os nomes do partido minoritário possam ser propostos por esse partido) assume um papel central na visão do autor

Algumas das orientações defendidas por Cavaco Silva no seu livro reflectem consensos estabilizados desde o Governo de Sá Carneiro. É o caso do estatuto dos Secretários de Estado que Cavaco Silva entende que deverão ser propostos pelos Ministros mas aceites pelo Primeiro-Ministro. Tendo tido competências próprias durante o Estado Novo, durante os Governos Provisórios e durante os primeiros Governos Constitucionais (excepto numa experiência restrita ao Ministério da Indústria) passaram a ter unicamente competências delegadas a partir do VI Governo Constitucional (Sá Carneiro). Cavaco Silva (e aliás todos os seus sucessores) manteria esta orientação e passou ´para o grande público como, tendo o Secretário de Estado da Defesa de um dos seus Governos, Eugénio Ramos(i), questionado este entendimento, lhe foi respondido serem os Secretários de Estado meros “ajudantes” dos Ministros. No livro, Cavaco Silva contraria aliás a tendência para que os Ministros se façam substituir em Conselho por Secretários de Estado. Recordo entretanto que ficou conhecido que, quando substituía um Ministro, Cavaco não deixava a seguir de lhe oferecer um almoço.

Julgo que será útil evocar o processo de formação dos Governos de Cavaco Silva para ir verificando até que ponto a sua prática como Primeiro-Ministro reflectiu o pensamento exposto por este, agora, autor.

O I Governo Cavaco Silva forma-se a seguir às eleições de 1985, provocadas pela ruptura do Bloco Central subsequente à sua eleição como Presidente do PSD no Congresso da Figueira da Foz. Mário Soares convicto de que no ano seguinte lhe será fácil suceder a Eanes na Presidência da República, lança Almeida Santos como “candidato a Primeiro-Ministro” com o slogan inepto “só faltam 7% !”(ii). A votação do PS cai para mínimos históricos, já que muitos eleitores se deslocam para o PRD patrocinado por Eanes, presidente cessante, e Mário Soares só consegue no ano seguinte ser eleito Presidente da República à segunda volta.

Neste contexto o PSD, já liderado por Cavaco Silva obtém 30% ou seja, aparentemente um resultado insuficiente para governar, sendo que mesmo junto ao CDS não constituiria maioria parlamentar(iii). No entanto Cavaco Silva aceita formar governo sozinho num movimento que qualifiquei na altura, para um círculo restrito de amigos e conhecidos, como “a estratégia leninista do Professor Cavaco Silva”, ou seja, alcançar o poder partindo de uma base minoritária, e pôr em prática medidas que ampliassem o apoio ao poder constituído.

Em Portugal nesta época não havia oportunidade nesta época para reproduzir algo de força equivalente aos Decretos sobre a Terra e sobre a Paz adoptados pelo poder soviético após a Revolução Socialista de Outubro de 1917 mas, quem estivesse atento aos primeiros tempos de governação de Cavaco Silva teve a possibilidade de identificar alguns desenvolvimentos inesperados, tanto em relação à estrutura do Governo como em relação à sua composição.

Quanto à estrutura do Governo:

  • foi dado um sinal fortíssimo em relação à Administração Pública: a estrutura da Secretaria de Estado / Ministério da Reforma Administrativa, que crescera entre 1974 e 1985 a partir da criação e cisão de sucessivos organismos, a ponto de instituir uma situação de tri-tutela das decisões, era fundida numa única Direcção-Geral da Administração Publica “arrumada” no Ministério das Finanças, passando a criar-se para a preparação de políticas um Secretariado da Modernização Administrativa, com uma estrutura ligeira e coordenado por uma Directora diretamente dependente do Primeiro – Ministro(iv), de certa forma evocando o que seria o projecto inicial do Secretariado da Reforma Administrativa criado em 1967;
  • foi posto fim ao modelo de centralização das obras públicas num único Ministério que vigorava desde 1941 e fazia com que este se preocupasse predominantemente com a carga de trabalho assegurada aos empreiteiros do sector, em detrimento da satisfação das “encomendas” dos outros Ministérios, sendo que na Educação e na Saúde já tinha havido necessidade de criação de serviços próprios; esta medida levou as estruturas associativas dos empreiteiros a seguirem com apreensão os trabalhos parlamentares relativos ao Orçamento do Estado seguinte(v);
  • foi criado um Ministério do Planeamento e Administração do Território, que numa primeira fase incluiu a Secretaria de Estado do Ambiente, mais tarde autonomizada em Ministério, estruturado em ordem a poder ser um interlocutor das estruturas da CEE à qual Portugal tinha aderido por Tratado assinado no ano anterior(vi).

e, também, verificou-se que Cavaco Silva procurara aproveitar para o Governo um certo número de social-democratas mais jovens que no Congresso da Figueira da Foz tinham estado próximos do sector derrotado.

Os desenvolvimentos poderão estar hoje um pouco esquecidos. Lembro-me de o candidato presidencial Salgado Zenha ter reconhecido que o governo de Cavaco Silva estaria a governar bem, de, no primeiro Orçamento que apresentou, o Primeiro-Ministro ter protestado por, alegadamente, ele ter sido desvirtuado pelo Parlamento (o protesto terá sido um pouco exagerado, e de qualquer forma a Constituição e a Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado não obrigam o Parlamento a respeitar o défice implícito na Proposta de Lei). E lembro-me de que o Governo caiu por força da aprovação de uma moção de censura apresentada pelo PRD sob um pretexto mínimo, tendo sido seguidamente convocadas eleições que deram uma maioria absoluta ao PSD. Retirou-se daqui, talvez apressadamente a conclusão de que as oposições seriam penalizadas sempre que derrubassem um Governo. Quanto à maioria absoluta seguinte, Cavaco Silva imputa-a ao bom trabalho do seu segundo Governo(vii).

Há aqui todavia um factor de ordem constitucional a considerar. Se a figura da moção de censura construtiva da Constituição da RFA tivesse sido transposta para a constituição portuguesa como o foi para a espanhola, Cavaco Silva e o seu governo minoritário de 30 % poderiam ter sido substituídos por meio de uma moção de censura vinculada a um candidato a primeiro-ministro, não sendo de excluir que na altura PS e PRD pudessem ter encontrado uma solução.

Em rigor o Presidente da República Mário Soares poderia ter deixado o Parlamento encontrar essa solução, mas aproveitou a oportunidade para tentar liquidar o eanismo e o seu partido. Três anos depois – amor com amor se paga – o PSD viabilizaria uma sua reeleição sem dificuldades. No entanto o eleitorado do PRD parece ter preferido aproximar-se de Cavaco Silva, e o próprio Eanes haveria de o apoiar para Presidente da República. Reconheça-se que Cavaco Silva sempre foi mais popular do que o seu partido.

Seria importante averiguar se a Arte de Governar (ou de ser Primeiro-Ministro) foi consistentemente aplicada por Cavaco Silva durante os seus três Governos. Eu diria que os princípios apresentados foram em geral observados e a sua aplicação foi reforçada com cautelas não explícitas na obra mas houve alturas em que uns tiveram de ser sacrificados para salvaguardar outros.

Por exemplo: é de elementar bom senso que em caso de conflito entre secretários de Estado e o seu ministro se reforce a autoridade deste último e António Costa já teve aliás ocasião de o fazer. Mas Cavaco Silva foi mais longe: salvo em dois casos, nunca nomeou um secretário de Estado de uma dada pasta como Ministro dessa mesma pasta. Seria incentivar o “Ministricídio”…. E num caso em que se previa que o Secretário de Estado nomeado – Durão Barroso – iria substituir o Ministro – João de Deus Pinheiro – quando este fosse nomeado Comissário Europeu, as coisas terão corrido efectivamente mal – há quem não saiba esperar. João de Deus Pinheiro foi desagravado através de um acto em que participaram os Directores – Gerais do Ministério e algumas figuras políticas relevantes, como Eurico de Melo. Quando ascendeu a Ministro, Durão Barroso terá dado 15 minutos a dois destes Directores-Gerais para se demitirem. O outro caso foi o do Secretário de Estado Arlindo Cunha que teve de substituir o Ministro da Agricultura Álvaro Barreto quando este foi inesperadamente afastado pelo Primeiro-Ministro, ao que parece por ter dado uma entrevista sobre questões de política geral, em que várias vezes cometeu um crime de “lesa-Cavaco”, dizendo “se eu fosse primeiro-ministro”. Talvez seja este um exemplo de demissão por “deslealdade.”

Um caso de substituição de Ministro que as avaliações terão tornado inevitável foi a do “adiantado mental” Jorge Braga de Macedo, que seria substituído não por Manuela Ferreira Leite, pessoalmente próxima de Cavaco Silva, mas que era na altura Secretária de Estado do Orçamento (e depois da substituição do Ministro foi parar a Ministra da Educação) mas por outra pessoa pessoalmente próxima do primeiro-ministro, Eduardo Catroga, que não sei se não terá sido seu condiscípulo no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras. Aliás só pela badana do livro me apercebi de que o macroeconomista Cavaco Silva, doutorado em Economia por York, se tinha licenciado pelo ISCEF em Finanças, curso que na altura, creio, já corresponderia a Gestão de Empresas.

Em geral, subscrevo o que o autor defende, pensando talvez em António Costa:

O que o Primeiro-Ministro não pode fazer é criticar o trabalho de um seu ministro em frente de quem quer que seja” .

A memória, todavia é uma coisa aborrecida: encontrava-me em funções no Ministério dos Negócios Estrangeiros talvez em 1988(viii) quando o Ministro João de Deus Pinheiro entendeu pronunciar-se sobre um qualquer aspecto de política que sinceramente não tenho presente. O Primeiro-Ministro não terá gostado e numa entrevista realizada dias depois o entrevistador pergunta-lhe o que pensa sobre as afirmações de João de Deus Pinheiro.

Cavaco Silva sai-se com uma frase deste género:

“O Professor João de Deus Pinheiro não é membro da Comissão Política do PSD e certamente não se terá pronunciado sobre esse assunto”.

Até aqui tudo bem. Só que o Primeiro-Ministro deu ordens ao Ministério para que a sua entrevista fosse enviada para todos os postos diplomáticos e consulares, menorizando a autoridade política do Ministro junto da “Carreira”.

Para não falar da não-delimitação entre o que é do Estado e o que é do Partido, princípio de que Cavaco Silva na sua Arte de Governar, se faz, e bem defensor.

Tal como Álvaro Barreto, João de Deus Pinheiro já existia politicamente antes do “Cavaquismo”, tendo sido ao que parece o primeiro dos ministros da anterior “situação” do PSD a aderir ao novo Presidente do Partido. Estes incidentes não abonam a favor de Cavaco Silva e julgo que em certa medida minam a sua autoridade para dar conselhos sobre a Arte de Governar.

Mas saúde-se o vigor intelectual que Cavaco evidencia aos 84 anos.

 

Notas

(i) Um excelente quadro, tanto quanto me chegou.

(ii) Como as maiorias absolutas se alcançavam com 43 % e em 1983 o PS alcançara 36 % e Mário Soares tinha excluído que o PS voltasse a governar sozinho, o partido apontava para uma maioria absoluta.

(iii) O CDS, dirigido por Lucas Pires, atingiria apenas 10 % dos votos com uma campanha eleitoral defensora do liberalismo económico, não exactamente sintonizada com a do PSD.

(iv) Isabel Corte-Real, mais tarde elevada a Secretária de Estado.

(v) E contudo Cavaco Silva havia tido o apoio no Congresso da Figueira da Foz do “PSD dos interesses”, designadamente do ex-Secretário de Estado das Obras Públicas, Eugénio Nobre.

(vi) Com reservas de Cavaco Silva que não integrava o Governo à data em que este foi assinado.

(vii) Estou a basear-me em outras partes do livro e não na lição sobre a arte de governar.

(viii) Fui Director de Serviços de Administração Financeira do Ministério dos Negócios Estrangeiros entre Junho de 1986 e Outubro de 1988,

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