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Domingo, Novembro 3, 2024

Auto-estrada da Democracia e da Cidadania?

CETA - Auto-estrada da democracia e da cidadania, Bratislava

O tratado de comércio e investimento, CETA (Comprehensive Economic Trade Agreement) entre o Canadá e a UE teve as negociações concluídas em Outubro passado e será ratificado pelos ministros representantes dos estados-membros (Conselho Europeu) no final de Outubro e pelo Parlamento Europeu ainda este ano, para entrar em vigor provisoriamente já no início de 2017.

A alegada transparência que a Comissão Europeia (CE) tem concedido ao seu irmão, o TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership, entre os EUA e a UE) nunca existiu no caso do CETA, uma vez que o secretismo sempre foi total relativamente às negociações deste tratado. Esta política de não abertura, temos de confessar, é sempre relativa, pois só se aplica aos cidadãos e media, já que as grandes empresas e seus lobbies sempre tiveram acesso irrestrito à totalidade da documentação, chegando até ao ponto de escreverem elas próprias alguns dos capítulos de ambos os tratados.

Objectivo dos tratados

Dizem vezes sem conta os responsáveis das negociações que o objectivo destes tratados (e outros como o TPP, TISA, etc…) seria agilizar o comércio e assim criar mais riqueza para todos, e que os receios das pessoas não têm razão de ser, pois todos os valores essenciais estão salvaguardados e são inegociáveis. Mas um exame atento mostra que essas afirmações têm pouca aderência à realidade dos factos. Ponto incontroverso é que dos 24 capítulos do CETA apenas 4 têm realmente a ver com o comércio, ou seja, a substância do tratado visa outros objectivos, muito para lá das simples transacções comerciais.

Aliás, mesmo desse estrito ponto de vista, os últimos estudos de impacto mostram sem sombra de dúvida que, mesmo no melhor dos cenários (também o menos provável), o PIB europeu apenas cresceria 0,08%, e só no fim de um longo período de ajustamento de cerca de 10 a 20 anos. Não é, portanto, principalmente o aumento do comércio que faz correr tão intensamente os interesses corporativos.

De entre os objectivos não declarados que estes tratados ditos de livre-comércio procuram concretizar, salientamos os seguintes:

  • Precarizar a força de trabalho e desvalorizar os seus rendimentos através da concorrência acrescida e da desregulamentação da legislação laboral, apelidada de “muito rígida” (cf. consequências do tratado NAFTA);
  • Baixar os impostos pagos pelas grandes corporações, alegadamente para facilitar o comércio;
  • Permitir às Corporações Multinacionais (CM) apropriarem-se dos activos públicos, empresas públicas e suas áreas de actividade;
  • Impedir os governos e instituições do estado de defenderem o interesse público, o ambiente ou as protecções laborais (algumas das bandeiras do actual governo português, como o aumento do salário mínimo ou a reversão da privatização dos transportes seriam impossíveis com o CETA);
  • Desenvolver um sistema judicial paralelo e privado que permita às CM atacar, contrariar e subverter as decisões do sistema judicial convencional e até as decisões dos governos nacionais ou locais (ISDS/ICS);
  • Conceder às CM direitos e privilégios acrescidos em áreas-chave da economia, como o sector dos farmo-químicos (patentes reforçadas), combustíveis fósseis (normas anti-poluição passam de obrigatórias a facultativas), organismos geneticamente modificados (OGM), pesticidas, serviços, alimentos processados, mineração, cuidados de saúde, protecção de dados, apropriação e comercialização de dados electrónicos dos clientes, fluxos de capitais, etc;
  • Afastar os cidadãos e suas organizações dos centros de decisão de modo a despojar a sociedade civil de qualquer mecanismo de intervenção relativamente a todas as medidas que afectem o bem-estar e o modo de vida das pessoas.
  • Instituir o lucro como objectivo máximo e único de todos os agentes sociais, em detrimento de todos os outros princípios que devem nortear a vida da sociedade moderna.
  • Colocar em prática uma série de dispositivos (cláusulas ratchet, standstill, future proofing e outras, cooperação regulatória…) que assegurem a absoluta irreversibilidade das medidas referidas acima, independentemente das consequências nefastas que possam provocar. É a blindagem da liberalização.

CETA e a saúde pública

Pela sua gravidade e consequências particularmente destruidoras, analisamos agora a questão das patentes dos medicamentos, paradigma do “comércio-livre”. O actual sistema de patentes que o CETA pretende reforçar bastante, já está a provocar verdadeiros desastres em termos da saúde pública. Imagine-se como será o panorama da sua extensão. Segundo dados da Ordem dos Médicos, um em cada três cidadãos não tem acesso a medicamentos essenciais e em países mais pobres, essa percentagem sobre para 50%. Os laboratórios argumentam que as patentes e os altos preços que elas permitem são indispensáveis para custear a investigação, mas os factos demonstram o contrário. Mais do dobro dos custos com investigação é investido pelas grandes farmacêuticas em marketing (40 mil milhões em 2014). Como consequência, morrem por dia em todo o mundo cerca de 2000 pessoas por não terem acesso a medicamentos. Estima-se que os custos de investigação sejam amortizados logo nos primeiros meses de venda dos novos fármacos e cerca de 87% das despesas nada têm a ver com a investigação propriamente dita. Cada tratamento da Hepatite C pode custar 30 a 40.000 € por pessoa na Europa, mas o custo real já foi calculado em 300€.

Nos EUA pode atingir 75.000 €, Egipto 1000 €, País Basco 30.000 €, Brasil 1000 €. O preço é assim fixado pelo máximo que os doentes estiverem dispostos a pagar. Os genéricos poderiam fazer baixar os preços, mas a extensão das patentes prevista no CETA e TTIP restringe muito o seu fabrico. Acresce ainda que a taxa de inovação tem vindo a cair e, segundo a UE, muitos dos novos medicamentos (75%) têm pouco ou nenhum valor terapêutico adicional. Além disso, diversas manobras (evergreening) conluiadas pelas grandes farmoquímicas permitem a contínua extensão das patentes.

Por ter uma clara consciência destes problemas, o Bastonário da Ordem dos Médicos Portugueses, num recente debate conjunto com os seus colegas espanhóis a 7/10/2016, concluíu que “Quem assinar estes tratados é considerado traidor à pátria”.

Indignação na opinião pública

Faixa: Não ao CETA e TTIP

Naturalmente que estes e muitos outros problemas suscitados pelo CETA e pelo TTIP têm provocado justa indignação na opinião pública dos dois lados do Atlântico. Recentemente, na Alemanha, enormes manifestações de repúdio juntaram mais de 320 mil pessoas em sete cidades.

Conscientes desta alargada onda de contestação, vários governos, nomeadamente na França e sobretudo Alemanha e até a CE, têm vindo a público propor algumas “interpretações adicionais” ao CETA para acalmar os opositores aos tratados que crescem dentro dos próprios partidos no poder.
Mas, naturalmente que essas propostas deverão ter muito pouco valor jurídico, face ao texto consolidado do tratado, e constituem portanto, mais uma manobra de marketing pontual, destinado a salvar o acordo in extremis. Seja como for, alguns países recalcitrantes já abrandaram as suas críticas, como a Bulgária e a Hungria, enquanto outros, como a Bélgica e a Grécia mantêm a oposição.

O caso português é interessante, já que Portugal foi um dos países minoritários que assinaram a “Carta dos 12”, dirigida à CE, na pessoa da Comissária Cecilia Malmström, assegurando a confiança no sucesso do CETA e pedindo que sejam resolvidos os problemas que têm obstruído as negociações do TTIP (tratado que Sigmar Gabriel, ministro alemão da economia e vice-chanceler, considera estar quase morto).

Independentemente das opiniões que possam existir sobre estes tratados, a verdade é que os principais partidos portugueses, em nenhum momento fizeram esforços consistentes para esclarecer e consciencializar o seu eleitorado sobre os graves problemas que a entrada em vigor do CETA, por exemplo, vem colocar na vida de todos nós. Por exemplo, um estudo recente da Universidade de Tufts (EUA) mostra que o CETA vai destruir 23.000 postos de trabalho, só no Canadá, e que cada exploração agrícola nesse país perderá qualquer coisa como $30.000 no seu rendimento.

José Oliveira
Pela Plataforma Não ao Tratado Transatlântico

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