O destino do acordo de comércio livre com o Canadá estava a deixar os líderes europeus à beira de um ataque de nervos. O impasse durava há mais de uma semana, depois da resistência da Valónia, já comparada à aldeia de Astérix pela “força das convicções” no combate à assinatura do tratado. Após ultimatos e rondas negociais de última hora, parece ter havido cedências às reservas do parlamento do sul da Bélgica. O texto final segue para aprovação, mas a cimeira União Europeia-Canadá, prevista para esta quinta-feira, foi suspensa.
A Valónia, região francófona belga, com pouco mais de 3,5 milhões de habitantes, estava até agora na frente de batalha contra o CETA, opondo-se à falta de transparência nas negociações. Os valões, irredutíveis nos últimos dias, recusavam pressões e surgiam como a verdadeira força de bloqueio à assinatura do controverso Acordo Económico e Comercial Global.
Na Europa dos 28, pairava a dúvida: sairiam vencedoras as pretensões do presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, da CE, Jean-Claude Juncker, e de Otava; ou da pequena Valónia que impedia a Bélgica de aprovar um tratado que exige unanimidade.
Justin Trudeau, primeiro-ministro do Canadá, já não viajou para Bruxelas. No entanto, o revés dá-se esta quinta-feira, pela hora de almoço, quando o primeiro-ministro da Bélgica, Charles Michel, informa a imprensa que foi alcançado consenso entre os representantes das regiões. As portas do mercado livre que envolve 500 milhões de pessoas estão novamente abertas ao Canadá, a 10ª economia do mundo.
Recorde-se, que há sete assembleias eleitas na Bélgica. A nível federal, conta com o Senado e a Câmara dos Representantes, depois existem os parlamentos da Flandres, Valónia e Bruxelas-Capital, e ainda a comunidade francesa (“Federação Valónia-Bruxelas”) e a comunidade germanófila.
“Total falta de transparência”
Em Portugal, o Governo de Costa parece alheio ao coro de protestos dos partidos à sua esquerda, que acusam o CETA de atacar a soberania e democracia portuguesas. Como recorda ao Tornado, uma dirigente do Partido Ecologista os Verdes (PEV), o acordo começou a ser negociado em 2009 “envolto em grande secretismo” e a sua versão final apenas foi conhecida publicamente em Fevereiro de 2016. “Até aqui, pouco ou nada tinha sido divulgado, sendo que alguns dos dados a que se foi tendo acesso advinham de fugas de informação”, lamenta Cláudia Madeira.
Os Verdes consideram que todo o processo se caracteriza por “uma total falta de transparência e democracia”. Por esta razão têm reivindicado que o CETA seja sujeito a um processo de ratificação pela Assembleia da República, e que o seu conteúdo seja objecto de um amplo debate público e alargado, tendo por isso apresentado um Projecto de Resolução.
A pretensão da CE é que o acordo entre em vigor de forma parcial e provisória já em Janeiro de 2017, sem a ratificação pelos parlamentos nacionais. Mesmo que uma parte se refira a competências exclusivas da UE, e que outra diga respeito a competências partilhadas com os parlamentos nacionais, para os Verdes permanece a preocupação: se houver uma recusa, “algumas medidas entretanto implementadas, continuariam em vigor pelos anos seguintes, sendo praticamente impossível reverter a sua aplicação e consequências”.
Para a dirigente da Comissão Executiva do PEV, há ainda um conjunto de reservas relativas ao seu conteúdo: “Está previsto um mecanismo designado de ‘Cooperação Regulatória’, que atribui a um órgão não eleito, onde constam quadros ligados aos lobbies das empresas, competências para fazer alterações ao texto inicial do acordo, após a sua ratificação, sem que isso requeira quaisquer negociações com os povos e os seus representantes a nível nacional”.
Uma das matérias mais polémicas diz respeito ao mecanismo jurídico, o ICS (Investment Court System), que permite às multinacionais processarem os países europeus em tribunais de arbitragem, caso os governos aprovem legislação que possa contrariar os lucros, ou perspectivas de lucro, das empresas sediadas no Canadá. Cláudia Madeira exemplifica: “isto pode acontecer se o governo, por exemplo, decidir aumentar o salário mínimo e se a empresa considerar que vai ter menos lucros do que esperava”. Com a agravante, “que o contrário não está previsto, ou seja, os países não podem processar as empresas”, acrescenta.
Os Verdes defendem, assim, que o CETA seja “debatido para que os cidadãos saibam o que está em jogo e que impacto terá nas suas vidas, a nível de segurança e soberania alimentares, de ambiente, e de direitos laborais”.
Falhou tiro ao alvo
O CETA (“Comprehensive Economic and Trade Agreement”) é um complexo tratado de 300 páginas e 1300 anexos, promovido pela CE, que pretende tornar livres as trocas comerciais entre os dois lados dos Atlântico, suprimindo praticamente todas as tarifas aduaneiras. Depois de sete anos de negociação, acusada de ser feita à porta fechada, os portugueses continuam alheados do tema.
Para a Plataforma Não ao Tratado Transatlântico, composta por dezenas de organizações da sociedade civil portuguesa, o acordo terá efeitos nefastos para a economia nacional. “A inexistência de um debate público alargado, transparente e democrático, está a impedir a maioria dos cidadãos e cidadãs de se aperceberem que a resposta à questão chave colocada por estes tratados irá alterar a sua vida, de forma irreversível”, diz o manifesto.
A Bélgica que surgia assim como um dos poucos países a exigir garantias sobre leis laborais, protecção do ambiente e do consumidor, alertando para os poderes das multinacionais, parece “ter tirado os pés do travão” à aprovação do tratado. O primeiro-ministro Charles Michel anunciou que o texto comum deve ser assinado por todos os parlamentos belgas até Sábado, dia 29.
Também a Bulgária e a Roménia que se tinham manifestado anti- CETA, acabariam por ver as reservas ultrapassadas depois da garantia de um regime de isenção de vistos para a entrada no Canadá.
A redacção final terá agora de ser apresentada aos restantes 27 Estados-membros e ratificada por todos os parlamentos nacionais. E apesar da seta lançada pela Valónia, foi falhado o alvo como previa a CE que sempre pretendeu a entrada em vigor do CETA já no início do próximo ano.