O espectáculo indecoroso promovido a meias pelo PSD/CDS e os administradores da Caixa Geral de Depósitos a propósito da incompreensível recusa de apresentação das declarações de rendimentos e das absurdas remunerações atribuídas acabou, como seria de esperar, com a triste demissão de António Domingues depois de várias semanas em que este deixou degradar a imagem da Caixa, apresentada aos olhos dos portugueses como uma empresa pública envolvida em disputas políticas e em que os seus gestores pretendem atribuir-se privilégios inaceitáveis, como se a empresa fosse deles, e sem que o accionista intervenha para pôr ordem na caserna.
Naturalmente que com António Domingues deviam ter saído o secretário de Estado que promoveu a sua escolha e os administradores-estudantes que foram enviados para o banco da escola pelo BCE devido à sua incompleta formação para este tipo de cargos. Sendo assim parece que continuam a existir ingredientes suficientes para que a saga continue.
Em paralelo com estes clamorosos tiros no próprio pé dados pelo Governo e pela Administração da Caixa, o PSD lançou um inquérito parlamentar que fragiliza o processo de recapitalização e pode atrasar importantes decisões para o futuro do banco público. Aqui o que está em causa é uma disputa de lugares, no fundo a partidarização da administração da Caixa, como fica bem patente com a nomeação do ministro da saúde do governo PSD-CDS, Paulo Macedo, como novo presidente executivo, logo aplaudida por toda a imprensa afecta à direita.
Como chegámos a esta situação?
A recapitalização da CGD insere-se num processo mais geral da reestruturação da banca portuguesa, necessária para sanar os erros clamorosos de gestão levados a cabo pela administração da generalidade dos bancos nacionais no período que se segue à adopção do Euro e a incapacidade de perceber como funciona a unificação monetária e os perigos que representa para o sistema financeiro de países periféricos.
Estes erros, visíveis aos olhos de qualquer observador independente, foram desprezados pela generalidade dos jornalistas económicos que pelo contrário teciam louvores à capacidade de gestão dos banqueiros portugueses, considerando-os praticamente geniais. Pouco depois estavam a diaboliza-los considerando-os criminosos. Hoje continuam a adorar acriticamente os que estão em funções e a, cobardemente, invectivar os que são afastados.
O maior erro consistiu em emprestar mais do que seria prudente. De facto os bancos entraram num frenesim de atribuição de volumes de crédito a empresas, sem olhar ao risco, em valores que muito ultrapassavam os dos depósitos dos seus clientes. Acresce que se endividavam no exterior a prazos curtos, para beneficiar de juros mais baixos, e emprestavam em Portugal a prazos muito mais longos.
O segundo grande erro foi o de emprestar sem cuidar de obter garantias que salvaguardassem os reais riscos em que incorriam. O terceiro grande erro foi o de estabelecer preços com spreads muito baixos e sobre um indexante controlado por entidade estrangeira: a Euribor controlada pelo BCE.
Outro erro clamoroso foi feito pelas entidades de supervisão. O negócio, pedir no estrangeiro e emprestar sem olhar a quem em Portugal, era aparentemente rentável e os bancos distribuíram milhares de milhões em lucros aos seus accionistas. Mas não eram lucros que estavam a distribuir era o capital. Isso foi possível apenas com o beneplácito das entidades de supervisão, nomeadamente o Banco de Portugal, que não obrigaram os bancos a provisionar o que já se antevia ser uma onda de crédito mal parado que se ia acumulando nos balanços.
Crise de líquidez e como esta originou a crise da dívida soberana
No momento em que o Lehman Brothers faliu, e se iniciou uma crise de liquidez, isto é os bancos evitavam emprestar uns aos outros com medo da falência do vizinho, os bancos portugueses estavam, pois, muito endividados.
O primeiro, de liquidez, consistia na impossibilidade de saldar as suas dívidas já que não dispunham de dinheiro nem encontravam outros que lho emprestassem. Esse problema foi ultrapassado exigindo a intervenção estrangeira da troika – lembram-se de Carlos Santos Ferreira (Bcp) à frente de outros banqueiros a instar o governo a pedir “ajuda” externa. A ajuda externa veio para os bancos, através de programas de financiamento do BCE, mas para os portugueses apenas se traduziu em austeridade e empobrecimento.
A primeira vítima dessa impossibilidade de conceder crédito foi o Estado. Sem que os Bancos pudessem comprar a dívida pública iniciou-se outra fase da crise: a da dívida soberana, que veio impor mais restrições, austeridade e empobrecimento.
Mas as restrições de crédito chegaram também às empresas, com um forte impacto na tesouraria primeiro, o que levou ao tapete as mais endividadas, e no investimento depois.
Se bem que hoje a generalidade dos bancos já não tenha situação de liquidez desequilibrada, este movimento de correção levou vários anos e provocou uma enorme devastação económica e social. O crédito contudo ainda não flui para a economia devido ao segundo travão: a crise da solvabilidade.
Crise de solvabilidade
O segundo problema era o da solvência. Agravado pelas restrições ao crédito o crédito mal parado, já elevado, explode e provoca fortes prejuízos na operação da banca e que se traduz por uma descapitalização profunda. Sem capital a falência é inevitável, arrastando accionistas, investidores e clientes aforradores.
Os montantes de crédito incobrável são elevados e impõem-se uma recapitalização do sistema. Os privados recusam-na. E o Estado tem sido obrigado a salvar os bancos, assumindo os prejuízos passados e a capitalização futura. Assim foi no BPN, no Banif e está a ocorrer no BES/Novo Banco. Dir-se-ia que se trata de uma nacionalização gigantesca de todo o sector. Na verdade contudo trata-se apenas da nacionalização dos prejuízos já que as instituições saneadas são imediatamente entregues à iniciativa privada, normalmente por um valor simbólico. O prejuízo nacionalizado recai com todo o peso nos cortes de benefícios sociais e das despesas públicas nomeadamente na saúde, pensões, educação e cultura.
Domínio estrangeiro
Preocupante é o facto de ser a Espanha que, através da absorção dos bancos saneados pelo dinheiro publico, tem vindo a controlar quotas de mercado crescentes do sector financeiro português, com todo o perigo que esse domínio comporta, uma vez que ficam na posição de controlar o tipo e o ritmo do investimento das empresas portuguesas, nomeadamente daquelas que concorrem com as empresas espanholas nos mercados nacionais e internacionais.
O mesmo, assunção de custos e posterior entrega a estrangeiros, se preparava para fazer com a Caixa o governo Passos. No entanto por pressão dos partidos que actualmente apoiam o governo no Parlamento foi possível recapitalizar a Caixa mantendo-a no sector público. A nova gestão, liderada por um destacado membro do governo anterior, não dá garantias que o plano do PSD tenha sido posto de lado.
Existindo ainda bancos no sistema financeiro português com fortes problemas de capitalização é natural que este movimento de salvação de instituições de crédito com dinheiro público continue no próximo ano e para além dele.
Crise persiste. Desafio do modelo de negócio
Com a descida das taxas de juro impostas pelo BCE a banca enfrenta hoje um problema de rentabilidade. Tendo emprestado a muitos clientes com base em spreads minúsculos sobre a taxa base do Euro (Euribor) os bancos confrontam-se hoje com juros a receber dos empréstimos extremamente baixos, por vezes mesmo mais baixos do que têm de pagar pelos depósitos e outros passivos. Nestas condições a operação passa a ser não rentável uma vez que as comissões não podem subir muito uma vez que já são em Portugal extremamente elevadas.
Impõe-se encontrar um modelo de negócios que permita subir os juros a receber pelo crédito e diminuir os juros a pagar pelos passivos. Isso será possível com uma expansão do crédito que permita diluir a importância da carteira de crédito com juros baixos ou nulos. A expansão do crédito só é equacionável após uma capitalização considerável dos bancos.
Esta situação pantanosa no sector financeiro está a restringir o crédito e a impedir o investimento, sem o qual o atraso económico e social se intensifica, e a atrasar o desenvolvimento do país, que não pode continuar sustentadamente a crescer com base nas receitas do Turismo, por mais relevantes que estas sejam.
Alternativa desejável
O que se impõe é o controlo estatal de partes significativas do sector financeiro, muito para lá da Caixa, evitando o controlo estrangeiro, e através de um saneamento dos balanços profundo, retomar o financiamento quer do sector público quer do sector privado, nomeadamente do investimento produtivo, contribuindo assim, decisivamente para o desenvolvimento económico.
Não parece porém que seja esta a estratégia do governo Costa para o sector, que pelo contrário persiste em assumir os custos e entregar os bancos a estrangeiros, com forte prejuízo para todos nós.