Quinzenal
Director

Independente
João de Sousa

Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

Charles Mingus: Baixo-Relevo

José Alberto Pereira
José Alberto Pereira
Professor Universitário, Formador Consultor e Mestre em Gestão

Na música, como em tudo na vida, o processo criativo é uma paleta de sentimentos, técnicas, experiências e ambientes. A melodia nasce desta forma e o seu compositor decora-a com um tempo, um compasso, um estilo, uma intensidade, uma interpretação, um ritmo, para que esta transmita ao ouvinte aquilo que nela imaginou. Em particular, o ritmo é o pulsar da música e, como diziam os US3, “the rhythm is everything”. No jazz, como noutros géneros, instrumentos como o baixo, o piano e a bateria são a secção rítmica, o suporte deste pulsar. Em geral o baixo é o instrumento que realça notas musicais e “joga” com os tempos marcados com mais ou menos intensidade. No capítulo do baixo a história do jazz entronizou Charles Mingus.

Nada foi simples na vida de Charles Mingus. A personalidade complexa, contraditória e por vezes agressiva, a instabilidade emocional e a tendência para o conflito criaram-lhe uma imagem nem sempre favorável. O seu desaparecimento aos 56 anos, numa idade em que muito ainda tinha para dar ao jazz, salienta a sua a genialidade na composição e na interpretação. A sua assinatura estava nos solos longos e intensos, nos temas estruturados e complexos que compôs, na liberdade harmónica de que gozavam os seus grupos, no ambiente de improvisação colectiva que caracterizava as suas actuações. Alguns autores consideram Charles Mingus como o precursor do free jazz. No entanto as suas raízes estavam bem ancoradas na música negra: gospel, New Orleans e acima de tudo o seu ídolo, Duke Ellington.

A carreira profissional de Mingus começa no dealbar da década de 40. O seu primeiro contrato como músico foi celebrado com Barney Bigard, clarinetista que pertenceu à Duke Ellington Orchestra. Nos anos seguintes tocou com Louis Armstrong, Kid Ory, Lionel Hampton, Charlie Parker e Duke Ellington. Os desentendimentos com músicos e agentes, chegando a algumas brigas em palco, conduziram a sucessivos despedimentos. Paralelamente, trabalha com um colectivo de músicos, designado Jazz Workshop, no qual privilegia o improviso e a exploração de novas fronteiras musicais. Este projecto esteve na base da sua fase mais produtiva, que se inicia em 1956 com “Pithecantropus Erectus”. O disco, editado pela Impulse, constitui o primeiro trabalho de relevo de Mingus como líder e é geralmente reconhecido como uma obra prima.

Em pouco tempo Mingus viu-se catapultado para a primeira linha da vanguarda do jazz. Muitos consideram a sua música como a mais democrática do mundo, uma forma de compor única que se vai tornando “user-friendly” para os músicos que a interpretam. A orquestração na música de Mingus é uma prova do seu génio. No total, Charles Mingus editou mais de 100 álbuns, 70 dos quais como líder, compôs mais de 300 temas, participou em 5 documentários e recebeu diversos prémios pela sua contribuição para o jazz e para a música contemporânea. As suas tournées percorreram os Estados Unidos, Canadá, América do Sul, Europa e Japão e terminaram em 1977, quando lhe foi diagnosticada uma esclerose lateral amiotrófica. A doença confinou-o a uma cadeira de rodas e impediu-o de continuar a escrever, tendo as suas últimas composições sido cantadas para um gravador. Morreu a 5 de Janeiro de 1979, em Cuernavaca, no México. Foi cremado e as suas cinzas foram lançadas ao Rio Ganges, na Índia.

Charles Mingus foi uma personalidade ímpar, não apenas na história do jazz, mas também na história da América. Músico, compositor, professor e activista dos direitos dos negros, define-se a si próprio em “Beneath the Underdog” (1971) da seguinte forma:

Eu sou três. Um permanece sempre no centro, despreocupado, inamovível, olhando e esperando para poder expressar o que vê aos outros dois. O segundo é como um animal assustado, que ataca pelo medo de poder ser atacado. Depois existe uma pessoa de que todos gostam, que deixa as pessoas entrar no mais profundo do seu ser, que é insultado e enganado e roubado e que quando se dá conta do que lhe tem sido feito se sente tão estúpido que gostaria de destruir tudo à sua volta, incluindo ele próprio. Mas como não pode volta a fechar-se dentro de si. Qual dos três é real? Todos eles são reais.”

 

Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a nossa Newsletter. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

Artigo anterior
Próximo artigo
- Publicidade -

Outros artigos

- Publicidade -

Últimas notícias

Mais lidos

- Publicidade -