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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

Ciclos políticos e percepção da corrupção ou fenómenos conexos

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

A percepção da existência de corrupção ou em geral de fenómenos de mau comportamento da responsabilidade de titulares de cargos políticos, de ex-titulares passados aos negócios, ou de dirigentes de interesses privados gozando da protecção de políticos desacredita os regimes / governos sob os quais se verificam e é um dos factores que podem minar o crédito das instituições e pôr em causa a sua continuidade.

Completando um ciclo de artigos em que percorri  várias bandeiras da extrema direita, dedico este à percepção pública sobre o comportamento dos políticos em regime democrático, que contrastaria com o tempo  de Salazar em que, ao que lhes diz a  sua memória, não teria existido corrupção.

Sob o regime fascista

Seria mais exacto  dizer que esta não foi percebida publicamente, mas não é despiciendo recordar alguns aspectos:

  • concede-se que Salazar não beneficiou pessoalmente do cargo, excepto no sentido de não permitir a sua disputa e nele se ter eternizado.
  • também é justo recordar que Marcelo Caetano e outros ministros melhor preparados, com créditos profissionais já firmados e aos quais não se pode imputar falta de seriedade, poderão ter sido prejudicados pelo exercício de funções no Governo ;
  • no restante o regime, e muitas vezes pessoalmente o próprio Salazar, se encarregavam de “colocar” os ex-membros do Governo, sendo de assinalar que o número de empresas com participação do Estado, ditas empresas de economia mista,onde podiam ser nomeados como administradores por parte do Estado ou concessionárias, onde podiam ser nomeados delegados do Governo, foi crescendo tanto que em 1956 houve necessidade de produzir um decreto-lei  para regular o assunto;
  • estas portas estavam abertas também para ex-comandantes militares e directores-gerais e, a um nível inferior, eram frequentes movimentações de professores  de liceu intrigando para abichar um lugar de presidente de câmara, então de nomeação governamental.

Em  termos de receitas cobradas  ou de desvios de disponibilidades de tesouraria é  de registar que o sistema de controlo herdado do  Século XIX (regulamento da fazenda pública, regulamento da contabilidade pública) foi sendo mantido e aperfeiçoado, assegurando preceitos básicos comuns às entidades privadas, tipo “o contabilista não faz a Caixa”). Fala-se muito das reformas de Salazar mas estas foram preparadas em conjunto com o Director-Geral da Contabilidade Pública  António José Malheiro, no cargo desde 1915, e o seu sucessor, Aureliano Felismino, num discurso proferido no ISCEF em 1948, onde elogia os vinte anos de gestão do Ministério das Finanças por Salazar e João Costa Leite (Lumbrales), não deixa de fazer referência positiva às tentativas de Afonso Costa, Vitorino Guimarães e Armando Marques Guedes.

Que eu saiba não existe um balanço das irregularidades financeiras cometidas / detectadas/ punidas  no período em que o Estado Novo durou, mas é de salientar que para além da gestão dos organismos de regime geral cujos pagamentos eram assegurados pela Caixa Geral do Tesouro com prévio controlo caso a caso da Direcção-Geral da Contabilidade Pública, nos organismos com autonomia administrativa ou autonomia administrativa e financeira funcionavam conselhos administrativos onde os dirigentes tinham assento ao lado de chefes de repartição ou de secção seus subordinados cujo voto concordante com as deliberações a adoptar era frequentemente exigido, e até de representantes da Direcção-Geral da Contabilidade Pública e, num caso ou outro, do próprio Tribunal de Contas.  Organismos de coordenação económica, organismos corporativos e empresas do Estado estavam menos controlados, mas tal não quer dizer que eventuais  desvios de fundos ficassem impunes.

O sistema de  controlo  veio a ser alterado a partir dos anos 1990, não sendo possível fazer aqui a sua avaliação, mas retenha-se que salvo em caso de organismos periféricos, é ainda muito difícil alguém locupletar-se com fundos públicos. Aliás não fará muito sentido  em  casos judiciais referir que os políticos,  dirigentes ou funcionários suspeitos nunca se haviam apoderado de dinheiro em caixa. A circunstância não é relevante: é muito mais fácil viciar um contrato público, com benefício de luvas, sem ser detectado, do que desfalcar a tesouraria.

Isto aliás era assim já antes do 25 de Abril: uma vez ou outra corria que o  responsável  pela área ou obra tal se “enchera” (era o termo técnico na altura) no exercício de um determinado cargo, sem que tal tivesse consequências.

De uma forma mais geral o regime  facilitava sobrelucros a grandes empresas por força de exclusivos de direito ou de facto, e até em geral do próprio condicionamento industrial, da repressão nas relações laborais, do funcionamento de um sistema fiscal mal estruturado e servido por uma deficiente fiscalização. E até, em certos momentos, da necessidade de salvar bancos (também houve casos destes) e entidades privadas em crise. Não nos esqueçamos de fazer estas contas.

No regime democrático

A questão do surgimento, em regime democrático, de comportamentos enquadrados como de corrupção ou infracções conexas por parte de titulares de cargos políticos ou funcionários, de ex-titulares de cargos políticos e até de dirigentes de entidades privados que lesam direitos e expectativas  dos cidadãos e obrigam a sacrifícios destes do Estado, pode, na minha visão, relacionada com:

  • multiplicação dos centros de decisão política e da relevância da  actividade de cada um deles, com particular relevância para os dirigentes autárquicos e empresas nacionalizadas;
  • grande instabilidade da estrutura da administração sujeita a fenómenos cíclicos de inflação orgânica e reestruturação / redimensionamento, com multiplicação das situações de autonomia e independência de gestão;
  • substituição dos controlos tradicionais sem efectiva operacionalização de novas formas de controlo;
  • perda do sentido de “interesse público” por parte de dirigentes e funcionários, o que pode ter sido potenciado por alterações dos estatutos do pessoal dirigente e de função pública;
  • maior disponibilidade de recursos, com o acesso a fundos comunitários.

Há também que ter em conta

  • que com o crescimento das despesas sociais e com a celebração de acordos com prestadores de serviço privados estes últimas funcionam de facto como ordenadores da despesa (por exemplo, na prescrição de medicamentos) o que propicia fraudes;
  • que o Estado é cada vez mais visto como  responsável de facto pelo resgate de entidades privadas onde foram cometidas fraudes ou por indemnizações que estas se não encontram em condições de satisfazer, o que aumenta o risco de que sejam cometidas infracções.

Admito igualmente que o estreitamento da base de recrutamento dos titulares de cargos politicos conduza a incentivar quem nunca tenha feito outra coisa na vida a aproveitar as oportunidades que se lhe deparem .

A preocupação com o fenómeno da corrupção surgiu logo com os primeiros ciclos de governação posteriores  à  entrada em vigor da Constituição de 1976.  Falou-se bastante no nível autárquico, com a concessão de licenças de construção  e com o lançamento de obras públicas municipais, mas também das obras públicas do Estado, centralizadas por decisão tomada em 1941 por Salazar, no Ministério das Obras Públicas. Este tipo de rumores  que se materializou em  poucos casos judiciais, apareceu frequentemente relacionado com a problemática do financiamento. partidário. A criação em 2003  da Alta Autoridade Contra a Corrupção, extinta poucos anos depois, não permitiu avançar significativamente na investigação de situações e o grande público não ficou com uma visão clara do que poderia estar em jogo.

Neste contexto, considerei na altura como positivo o desmantelamento do Ministério das Obras Públicas pelo I Governo Cavaco Silva, e a colocação da maioria das obras sob uma lógica sectorial (fazendo cada  Ministério as suas próprias obras) ou espacial (no Ministério do Planeamento e Administração do Território) isto é as obras seriam lançadas em função de objectivos e das prioridades dos  ministérios clientes e não como forma de ajustar a carteira de obras públicas às expectativas dos grandes empreiteiros. Tendo sido Cavaco Silva apoiado na Figueira da Foz pelo lobby do PSD pró-empreiteiros a capacidade do seu governo então minoritário actuar com autonomia relativa a estes interesses,e a própria capacidade do Primeiro Ministro reunir uma equipa não conotada com práticas anteriores fê-lo na altura ganhar pontos.

Todavia, no decorrer das três legislaturas e até em ciclos seguintes, uma boa parte dos membros dessa equipa (não todos) foi-se ocupando de negócios menos recomendáveis, alguns dos quais envolveram, como é conhecido  o BPN, depois de, quando estavam ainda em funções governativas, terem contribuído para uma redução da capacidade de defesa de interesse publico pelos serviços.

Com a vitória de António Guterres em 1995 foi chamada ao desempenho de funções governativas uma equipa relativamente jovem  cujos membros são hoje ainda em grande parte protagonistas dos jogos políticos.  Não tendo havido em parte dos sectores uma verdadeira ruptura no estilo de gestão  imposto à administração pública, também me parece que a sua acção contribuiu para esbater a noção de interesse público, aliás uma boa parte do pessoal transitou mais tarde  sem problemas para o serviço de interesses privados, levando consigo as suas qualidades de gestão… e a sua capacidade de influenciar políticos no activo. Recordo-me que no início era usual ver os membros do núcleo político do Governo para darem orientações, ou tentarem dá-las, para a tramitação de processos que corriam pelas áreas económicas.

Para além dos processos judiciais em curso

Os actuais níveis de percepção da corrupção poderão não levar de imediato água aos moinhos eleitorais da extrema direita, mas reflectem-se no descrédito das instituições. Tenho vindo a defender que:

  •  os partidos adoptem regras de comportamento para os seus membros que venham a desempenhar cargos políticos e, para os que não os integrem, quanto à relação que venham a manter com os primeiros;
  • a surgirem incidentes, aprendam a avaliar por si mesmos se os seus protagonistas devem ser ou não afastados, a título definitivo ou preventivo, das funções que exercem e da própria militância partidária (entre o “arguidismo” que leva à remoção automática de qualquer suspeito, e ao seráfico “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça” há um espaço que é conveniente começar  a saber preencher);
  • insistam numa investigação na hora, que  evite que a atenção da opinião pública seja sistematicamente solicitada para processos relativos a factos do ciclo politico anterior ou até de há dois ciclos atrás.

E sobretudo que saibam assumir responsabilidades políticas. Vejo com desagrado que ao contrário do mea culpa que preconizei aqui no Jornal Tornado o Partido Socialista está apenas a tentar transferir para os antigos gestores e para a análise casuística das operações de concessão de crédito, a efectivação das responsabilidades civis ou criminais emergentes do apoio ao take over sobre o BCP, não falando de outro tipo de responsabilidades. Não pode ser.

Marcello Caetano, uma biografia política, de J.M. Tavares Castilho.

O mesmo autor, em A Ideia de Europa no Marcelismo (1968-1974) refere a atribuição a Franco Nogueira da presidência do Conselho de Administração do Caminho de Ferro de Benguela. Aliás personalidades políticas como Domingos Fezas Vital e Mário de Figueiredo exerceram também funções no Conselho de Administração da CP.

Ver caso referido por L.T. (Luís Trindade) no Dicionário Biográfico-Parlamentar 1934-1974 I Volume.

Como não poderá deixar de reparar quem consulte no ANTT o fundo da Direcção-Geral de Administração Política e Civil do Ministério do Interior.

Vinte Anos de Administração Pública, Gabinete de Estudos António  José Malheiro, 1949.

Ver caso da prisão, em 1948, do Director do semanário neofascista A Nação, “culpado  de ter desviado fundos  da Caixa de Previdência do Pessoal da Indústria Corticeira, onde trabalhava, para cobrir dívidas de jogo”, referido por Riccardo Marchi em Império, Nação, Revolução – As direitas radicais portuguesas no fim do Estado Novo (1959-1964).

Ver o meu artigo no Jornal Tornado de 6 de Junho  de 2018 ”Três gerações de dirigentes na política e na alta função pública”.

Ver o meu artigo no Jornal Tornado de 7 de Novembro de 2018 ”Escolher os dirigentes da Administração Pública por concurso?

Ver o meu artigo no Jornal Tornado de 9 de Maio de 2018, “O que o parlamento pode – e talvez deva – fazer sobre a CGD”.


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