Cientistas Sociais denunciam as seguidas ameaças de restrições de recursos para a Ciência e o ensino superior e, em particular, para a pós-graduação de excelência desenvolvida no País. Quem ganha com a retirada de direitos e o desmonte do sistema?
Neste ano, alguns dos temas que são caros aos cientistas sociais ganharam grande destaque no Brasil.
Não foi, no entanto, porque houvesse no governo preocupação real com eles, no sentido de enfrentar os desafios existentes em um país tão diverso e desigual. Foi com violência e empregando o recurso ao medo que o governo de Jair Bolsonaro lidou com direitos das populações mais vulneráveis, com desafios ambientais, com o conflito social. Indígenas, negros e negras, pessoas LGBTQIs e as mulheres, em geral, viram crescer as ameaças, ao mesmo tempo que a desregulamentação acompanhou a legitimação das violências.
A estigmatização desses grupos, já antiga em nossa sociedade, se tornou parte do discurso de mandatários e do próprio presidente da República. Ele tem estimulado pânicos morais e difundido mentiras, entre lives, fake news e postagens que pactuam com injustiças, exibem tendências autoritárias e desrespeitam tantas e tantos cidadãos.
O sistema de Ciência e Tecnologia e o ensino superior, institucionalizados historicamente e com efeitos positivos em todo o país, foram tratados de maneira particularmente irresponsável. A ameaça sistemática de retirada de bolsas fez parte de uma dinâmica que visa criar instabilidade e insegurança. Também aqui, a zombaria e o desrespeito tornaram folclóricos os pronunciamentos daquele que esteve à frente do Ministério da Educação. Criado em 1951 e responsável pelo fomento de parte importante da pesquisa no Brasil, o CNPq foi sistematicamente tratado como uma espécie de “problema a ser eliminado”.
A Capes, cuja criação vem também dos anos 1950 e que ganhou em robustez nas décadas posteriores, teve não apenas recursos reduzidos, mas uma indefinição em algumas de suas tarefas fundamentais, como a das diretrizes para a avaliação da pós-graduação. O mesmo ocorreu com a Finep, importante agência de financiamento da pesquisa, cuja criação nos leva, aliás, para os anos de chumbo da ditadura militar, tão cara a alguns dos integrantes do atual governo.
Os recursos escassos precisam ser colocados em perspectiva histórica. Afinal, escolhas estão sendo feitas e elas não convergem, até o momento, na valorização da Ciência e da Educação. Por outro lado, a restrição de direitos e a redução do alcance das políticas públicas determinado pela PEC do “teto de gastos” levam à precarização, ao empobrecimento. De novo, a resposta é a violência porque processos de privatização nesse caso são também uma forma de desalojar, desconstruir a chance de trajetórias, colocando em risco o futuro das novas gerações.
Como cientistas sociais, preocupam-nos as seguidas ameaças de restrições de recursos para a Ciência e o ensino superior e, em particular, para a pós-graduação de excelência desenvolvida no País. Cortes, parcialmente, revertidos graças a uma forte mobilização nacional, liderada pela SBPC e associações científicas, que articulou a sociedade civil aos parlamentares no Congresso Nacional.
Nós, professores/as e pesquisadores/as, temos assistido aos efeitos perversos desta política de descaso: o medo, a angústia e a depressão de nossos estudantes da graduação e pós-graduação face à propagação de falsas acusações contra temas de suas pesquisas e ameaças de cortes de bolsas que garantem sua permanência na universidade.
Como eles, nós também nos perguntamos a quem serve essa política. Quem ganha com a retirada de direitos e o desmonte do sistema de Ciência e Tecnologia, juntamente com o do ensino superior público? Certamente, não é o Brasil. Qualquer projeto de desenvolvimento, depende da formação de quadros para o futuro, de pessoas capazes de compreender o país em que vivem, de encontrar soluções. Nesse ponto, as Ciências Sociais têm muito a dizer. É verdade que são posicionadas. Têm sua história fortemente relacionada à interpretação de nossas mazelas e de nossas potências. Podem mobilizar diferentes redes de produção de conhecimento, estimular entre elas o debate, gerar formas de visibilidade e dar suporte a instituições públicas estatais, governamentais e não governamentais.
Assim, são ciências voltadas às problemáticas sociais e com alta participação na esfera pública. Essa dimensão política é valiosa no Brasil, sobretudo, depois da Constituição de 1988, quando os cientistas sociais foram convocados a decifrar e enfrentar os problemas estruturais resultantes de uma expressiva desigualdade social, através da formulação e avaliação de políticas públicas e formação de profissionais. A desigualdade social é uma abstração se não estiver sendo considerada a partir de evidências quantitativas e qualitativas que situam os grupos sociais em termos de classe social, gênero, raça, regionalidade, nacionalidade, escolaridade, orientação sexual.
Como toda a ciência, as Ciências Sociais dependem de liberdade de pensamento e crítica para que se desenvolvam. Por isso, seu ambiente é, por excelência, o da democracia. Quando a democracia está sob ameaça, estão também os cientistas, o pensamento crítico e o próprio combate à violência. Lutar contra ela exige conhecer os mecanismos que a produzem, contribuição inegável das Ciências Sociais.
Por exemplo, o aumento vertiginoso de feminicídios em 2019, colocando o Brasil em 5º lugar de assassinatos de mulheres por seus parceiros é uma consequência direta do desmonte de políticas públicas federais para mulheres. No mesmo sentido, na esteira da estigmatização e da homofobia, travestis continuam a ser dizimadas em todos os lugares do Brasil, na maior parte das vezes com extrema crueldade. Ao mesmo tempo, ataques de grupos conservadores aos estudos de gênero têm impedido maior formação e conscientização a respeito das desigualdades entre homens e mulheres, ações que abrem o caminho para a construção de relações sociais menos violentas.
E não é só nas relações de gênero que uma espécie de licença para humilhar e matar coincide com o rechaço à pesquisa. Dados divulgados pela Comissão Pastoral da Terra mostram que 2019 foi um ano recorde de assassinato de indígenas no Brasil, com nove assassinatos até o presente momento. Também as populações negras têm sido alvo direto da violência institucional do Estado brasileiro como vimos em inúmeros casos de assassinatos de jovens e crianças negras por parte de agentes de segurança estatais. Enquanto isso, as preocupações do governo são com um suposto “marxismo cultural”. Há desafios muito importantes e com vidas em jogo.
Sim, nós das Ciências Sociais temos lado. Nosso compromisso é com a ciência, a educação, a democracia e a construção de um país mais justo.
por Flávia Biroli, Jacob Lima, Maria Filomena Gregori, Miriam Pillar Grossi, Blog Faces da Violência | Texto original em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV / Tornado
- Flávia Biroli, Presidenta da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP)
- Jacob Lima, Presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS)
- Maria Filomena Gregori, Presidenta da Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
- Miriam Pillar Grossi, Presidenta da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs)