Há algumas semanas Camus e Saramago estão no topo de “mais vendidos” em livrarias online.
O pânico de ver o mundo colapsar em semanas, ameaçado por um inimigo invisível, levou muitos leitores a buscar resposta na literatura. Tanto “A Peste”, do francês, quanto “Ensaio sobre a cegueira”, do português, ensinam que em tempos de incerteza a saída é coletiva. Entretanto, aqui no Sul do mundo temos um jeito bastante próprio de narrar nossa cólera. E a lista é sobre isso.
Nossa literatura é marcada pelo realismo mágico nos anos 70, mas de lá pra cá emergiram diversos movimentos e os jovens escritores tem produzido muito e uma produção bastante promissora. Entre os contemporâneos é claro que há quem reverencie os clássicos do século 20, e também quem os copie de forma descarada. Outros desdenharam deste “selo de literatura latina” espalhado mundo afora e há também quem ousou – e conseguiu – repetir o sucesso inovando na fórmula.
Selecionei cinco contemporâneos de países e décadas diferentes que se encontram, de certa forma, num ponto comum: o medo do mundo lá fora e a ansiedade que nasce aqui, do lado de dentro.
Distância de Resgate
Romance de estreia da argentina Samanta Schweblin lançado em 2014 no Brasil. Considerada pela crítica de seu país uma das narradoras mais promissoras de sua geração, ela mergulha no realismo mágico de Julio Cortázar e entrega uma narrativa tensa e original, sem tropeçar e virar uma cópia repaginada de seu conterrâneo.
Por que ler agora? Uma doença desconhecida atinge um vilarejo no interior, em especial as crianças que parecem virar pequenos mortos-vivos. Na busca por uma solução, ciência e crendices populares se misturam enquanto a população padece sem saber de quem se defender. É como se a desgraça chegasse pelo ar.
Pedro Páramo
Este único romance do mexicano Juan Rulfo, publicado pela primeira vez em 1955, e no Brasil só nos anos 2000, é uma das obras mais influentes da literatura hispânica. Recebeu o Prêmio Nacional da Literatura do México e o Prêmio Príncipe de Astúrias, na Espanha. Considerado um dos grandes expoentes do realismo mágico, em 1991 o autor foi homenageado com a criação do Prêmio Juan Rulfo.
“Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo”, diz o narrador na primeira linha. A vila fantasma, neste caso, é quase um protagonista, e seus moradores estranhos parecem estar em isolamento social. Mas não é exatamente disso que se trata tanto silêncio pelas ruas de Comala.
Salão de Beleza
Por um acaso Mário Bellatin nasceu – e acabou ficando – no México, mas é filho de pais peruanos. Salão de Beleza é considerado um dos cem melhores livros de língua hispânica dos últimos 25 anos. Há muitas versões da mesma obra porque uma das características do autor é reescrever quase tudo que produz. A edição mais recente lançada no Brasil, em 2017, foi escolhida por ele e transformada numa pequena jóia em formato de livro com apenas cem exemplares numerados pela editora Desterro. Mas é possível encontrar as edições anteriores.
No livro, a Cidade do México foi atacada por uma doença terrível que mata de forma lenta e muito dolorida. Sem cura, doentes morrem pelas ruas, abandonados pela família. O protagonista, que não tem as tais feridas, transforma seu salão de beleza num “morredouro” para acudir quem não tem onde – literalmente – cair morto. Mas a rotina com tantos “clientes” o impede de cuidar da sua lindíssima coleção de peixes. Os espelhos, os aquários e os famélicos fazem desta metáfora para a chegada da Aids uma narrativa perturbadora, e ao mesmo tempo sensível.
Jamais o Fogo Nunca
A chilena Diamela Eltit conseguiu fazer o que poucos fizeram tão bem na América Latina, seus romances mesclam com leveza uma literatura experimental com comprometimento político. “Jamais o fogo nunca”, cujo título são versos emprestados do poeta peruano Cesar Vallejo, é o equilíbrio perfeito entre forma e conteúdo e figura também na lista dos cem melhores romances de língua hispânica dos últimos 25 anos.
Num quarto pequeno e mofado a protagonista e seu companheiro discutem porque estão cansados de não poder sair, o corpo dói, o passado também. O mundo mudou, ficaram para trás uma revolução fracassada e um filho morto. Na rotina intrincada do casal, cada migalha de pão vira faísca para começar um novo inferno entre quatro paredes.
A Mulher Habitada
Primeiro Gioconda Belli fez a revolução, depois se ocupou da escrita. Ainda muito jovem integrou a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), movimento revolucionário contra a ditadura de Anastásio Somoza, na Nicarágua. Se dividiu entre a trincheira e a produção literária, transportou armas, viajou pela Europa e pela América Latina para coletar recursos e divulgar a luta nicaraguense e publicou poemas. Depois da vitória sandinista, se dedicou à literatura por completo e se tornou uma das mais relevantes poetas e romancistas de sua geração. Nos anos 70 recebeu o Prêmio Casa das Américas.
A Mulher Habitada se passa num país imaginário, nos anos 70, sob uma ditadura. A protagonista, Lívia, é uma jovem a frente de seu tempo por muitos motivos. Escolheu uma profissão a um casamento e não se dobra ao controle do namorado – um colega do escritório de arquitetura que assim como ela tem uma vida clandestina. Uma narrativa feminina e feminista onde a ancestralidade latino-americana e a conjuntura política se entrelaçam de forma harmônica, sem deixar de lado as muitas contradições que podem surgir. Um romance desses que nos devoram e nos fazem questionar o quanto estamos dispostos a abrir mão pela luta coletiva. Uma inspiração para quando a pandemia passar e a gente começar a reconstruir o mundo.
Se a realidade parece muito assustadora agora, que a literatura seja um descanso e – quem sabe – uma saída, porque nem a peste nem a cegueira duram pra sempre.
por Mariana Serafini, Jornalista e especialista em América Latina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) | Texto original em português do Brasil
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