Edir Pina de Barros, poeta e antropóloga nascida em Ponta Porã (RS), é uma estudiosa das comunidades indígenas brasileiras e tem desenvolvido um rico trabalho poético que registra práticas culturais, lendas e relatos mitológicos de diversas etnias, incorporando também palavras do tronco linguístico tupi-guarani em seus versos, que adquirem expressiva força sonora.
Em suas composições, a autora concilia a musicalidade, as imagens poéticas e a construção de pequenas narrativas com o enfoque crítico do processo de genocídio dos povos indígenas brasileiros, iniciado com a colonização portuguesa e que permanece até os dias de hoje.
O crescimento da intolerância e da violência contra as comunidades indígenas, quilombolas e os trabalhadores rurais sem terras desde o golpe de Estado de 2016 até o início do novo ciclo autoritário no País conferem extrema atualidade a essa poesia –uma voz necessária para a defesa da biosfera, do pluralismo cultural, étnico e religioso que define a cultura brasileira.
Da série barbárie
Os Akroá-Gamella olhavam e não viam aldeias, pés de caju, juçara, bacurizeiro, guarimã, pacas, tatus, cotias: apenas búfalos e bois. Rompendo a invisibilidade dos renegados pelo Estado (que os declarou extintos) decidiram retomar, pouco a pouco, as terras de seus pais e avós. E foram cortando cercas, erguendo aldeias, demarcando espaços. Luta desumana, desigual. Duas centenas de homens com armas de fogo, facões, pedaços de pau, contra trinta homens, mulheres, crianças, correndo e caindo no pasto: vinte e dois feridos. Um foi baleado no tórax, na perna, golpeado na testa e viu serem decepadas as suas duas mãos. Outro, ferido à bala, depois de muitas pauladas teve sua mão direta arrancada por golpe certeiro de facão. Seus joelhos foram cortados nas articulações para que não pudessem correr, como se faz com búfalos e bois que invadem roça dos outros na baixada maranhense. O agressor relatou que precisou “pisar em suas pernas para retirar o facão que ficou cravado no osso, como quem retira um machado cravado no tronco de uma árvore”. Ribamar não dança mais, a sua mão reimplantada não lhe pertence mais: não bate tambores rituais, não caça-pesca-planta, não tem forças para nada, nada suporta, apenas dói.
As “vítimas das invasões” nunca nem ouviram falar de índios por ali.
(Maranhão, 30 de abril de 2017)
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Relata o velho piaje,
a relembrar o passado:
“Meus avós nasceram lá,
meus avós morreram lá
onde tudo está arado;
foi lá que nasceu meu pai,
foi lá que morreu meu pai
e é lá que está enterrado;
eu nasci naquelas terras,
eu cresci naquelas terras,
foi lá que eu andei, casei;
conheci as leis do kado,
cantos sagrados do kado,
aprendi curar, curei;
lá morava nossa gente,
trabalhava a nossa gente,
caçava por todo lado;
não conhecia cachaça,
eles trouxeram cachaça,
açúcar, sal e machado;
karaiwa veio do sul
trouxe soja lá do sul,
cercou, plantou, trouxe o gado;
hoje o povo está aqui,
nasce, cresce, vive aqui
nesse canto, encurralado.”
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Do outro lado toda mata
é domínio de Ynhangonrom,
seu sodo, dono-senhor .
Ynhangonrom tem peito imenso,
enorme peito que guarda
leite-veneno-mortal.
Ynhangonrom jorra seu leite
naquele que não respeita
o seu território sagrado
Ao seu lado vai Karowí,
que leva sempre consigo
machado em forma de sapo.
Circulam as matas, circulam
a examinar cada tronco
a cuidar de seu reinado.
Não se derruba uma árvore,
sem respeito, precisão,
na exata necessidade.
Do outro lado é diferente
desse pensar, dessa gente:
a mata é mercadoria.
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Voltar é ver os campos destruídos
pelo gado dos outros
em troca de miséria, quase nada.
Voltar é ver os campos arrendados
(aluguel ilegal)
para os novos algozes seculares.
Voltar é ver a rédea imposta à terra,
cavalo fiel, domado
domesticado, com viseiras, peias.
Subjugadas as mãos das tecedeiras
que já não fiam, tecem
a rede de algodão cantada em mitos.
(A rede originária onde se nasce,
se deita quando uanki,
se casa, se dorme, se enterram os mortos).
Voltar é não rever roça e fartura
de caça e peixe, awadu,
sagrado milho originário kurâ.
Voltar é ver os campos pisoteados
e desviscerados,
a rédea de aço a dominar um povo.
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Quantas balas
em cinco séculos?
Mais de mil povos
exterminados.
Bugreiros, capangas,
batedores de mato
correrias e chacinas
guerra justa e álcool.II
Quantas balas
no tekoha sagrado
dos Guarani-Kaiowá?
Nem Ñanderu sabe.
Milícias encapuzadas
fecham o cerco,
ínvadem aldeias
e atiram sem trégua.
Espancam, sequestram,
afugentam, estupram,
atropelam, torturam
e matam impunemente
Pássaros de ferro
sobrevoam o tekoha
balas e mais balas
barbárie secular.
E agora? Quantas balas
no tekoha sagrado
dos Guarani-Kaiowá?
Nem Ñanderu sabe.
III
E os recentes genocídios
Tikuna e Yanomami?
Os isolados? Os acampados
entre cercas e estradas?
Neste tempo de barbáries,
abre-se oficialmente
nova temporada de caça
com carta branca para matar.
por Claudio Daniel, Poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG | Texto original em português do Brasil
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