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João de Sousa

Segunda-feira, Novembro 4, 2024

A montanha pariu um rato – amarelo

Estátua de Sal
Estátua de Sal
Economista reformado. Trabalhou como Professor universitário na empresa FEUC - Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra de 1983 a 2014

Se eu fosse adepto das teorias da conspiração diria que esta história dos coletes à portuguesa teria sido encomendada pelo António Costa.

O Governo, atacado pelos enfermeiros, pelos professores, pelos procuradores, pelos juízes, pelos guardas prisionais, pelos helicópteros a cair, pela Procuradora Geral da República a ameaçar, pelos recados do Prof. Marcelo, pelos alarmes da Dona Cristas, e pelo coro de comentadores assanhados que povoam o espaço público, adivinhava-se que iria ter um Natal tristonho, sem bacalhau para a ceia, nem uma prendinha que se visse no sapatinho.

O país estaria zangado com António Costa. O país teria pesadelos e acordava assarapantado de noite com suores frios, porque em sonhos lhe teria aparecido Passos Coelho a prometer uma grande descida de impostos e a jurar, a pés juntos, que desta vez seria mesmo a sério e para valer.

E por isso o país inteiro viria para a rua vestido de amarelo, cartão da mesma cor a dar ao Governo, reclamando menos impostos, maiores salários, menos falhas do Estado, mais serviços públicos, menos mordomias para  os políticos, menos canga para o povo cansado de sofrer, cansado da inoperância e das orelhas moucas da classe política.

As televisões anunciavam e promoviam, em caixa alta, numa espécie de frenesim orgástico a eminente tomada do Terreiro do Paço pela imensa fúria do povo injustiçado, às mãos de uma Geringonça contranatura. O Prof. Marcelo ajudava à festa e, sob o pretexto de apelar à calma e ao comedimento, reunia-se com os líderes do movimento dando-lhes visibilidade e carimbando – qual promulgação presidencial -, a justeza dos protestos e das reivindicações.

As polícias prepararam-se e contaram os stocks de gás lacrimogéneo, não fosse a coisa dar para o torto. Azar, ficaram aflitos. Os stocks estavam mesmo em baixo devido às cativações do Dr. Centeno. Os pivots das televisões deitaram-se mais cedo, antevendo que, no dia seguinte, teriam que fazer uma maratona cansativa com directos de inédita violência, pautados pela sábia e continuada análise dos comentadores de serviço.

Pois bem, o dia começou com céu ligeiramente nublado, temperatura média de 15º graus, sem precipitação, humidade relativa de 79%, velocidade do vento, 5km/h. As gentes saíram para a labuta diária. Carros, autocarros, transportes públicos, engarrafamentos nos pontos do costume.

E os amarelos afinal também apareceram. Às dúzias, apenas. Em Lisboa não chegavam para encher uma bancada do Estádio da Luz e no Porto a mesma insuficiência para o Estádio do Dragão. Em Faro, um directo ridículo da CMTV conseguiu entrevistar cinco amarelos.

O êxito de qualquer manifestação pública mede-se, certamente, pelo número de cidadãos que se manifestam, e costuma sempre haver alguma controvérsia no contar das cabeças. Tal regra não valeu neste caso. As imagens das televisões foram inequívocas: mais polícias e jornalistas que manifestantes foi a proporção que sobressaíu de muitas das imagens.

Pelas onze da manhã, António Costa enfrentou afoito as televisões e, com um sorriso meio trocista, foi dizendo que em Portugal não há razões para se temer que haja alarme social. O Prof. Marcelo, sempre em cima do acontecimento, permanecia mudo, sem agenda pública, talvez muito ocupado a fazer as compras de Natal. Os comentadores estavam de orelha murcha. Por volta do meio-dia a SIC passou as parangonas para o caso do e-toupeira e deixou osamarelos entregues à sua sorte.

Ora, este fiasco amarelo no qual os críticos de serviço deste Governo apostavam em força – alguns de forma óbvia, outros de forma envergonhada e mais sub-reptícia -, por muitas outras justificações que se queiram agora encontrar, só pode ser explicado porque o descontentamento dos portugueses com a governação está longe de atingir o nível de desagrado que a direita propaga e tudo faz para empolar.

Portugal não é a França e Costa não é Macron que tem governado contra a maioria do povo, a favor da elite e das grandes fortunas e assim se preparava para continuar, sendo isso o rastilho da contestação. Costa lá vai subindo um pouco o rendimento das famílias, o salário mínimo, ainda não baixou o IRC como pretende o Saraiva da CIP e todo o coro da direita encartada, e mesmo assim leva logo o cartão amarelo da Comissão Europeia, da Dona Teodora e dos demais profetas da desgraça.

Não, Portugal não é a França. Se o fosse, Costa poderia satisfazer – como fez Macron -, todas as reivindicações salariais da função pública, mais as carreiras dos professores e ainda ficava com uns trocados para acudir ao SNS, sem que ninguém viesse sancionar o país por deficit excessivo, nem que subissem os juros a pagar pela dívida pública.

Pelos vistos os portugueses estão conscientes dessa diferença de contextos, quer a diferença entre o poderio político e económico dos dois países no seio da União Europeia, quer, fundamentalmente, a diferença na postura ideológica dos seus dois governantes na condução da política económica a qual tem impacto sobre o seu nível de vida e de bem-estar.

A partir daqui, quando a Dona Cristas vociferar cobras e lagartos, quando Marcelo vier com as falhas do Estado e o desânimo dos portugueses, quando a direita vier arrolar os comboios que não andam, as estradas que ruem, os helicópteros que caem e as cirurgias canceladas como prova de grande anarquia e descontentamento social, António Costa poderá, com um leve sorriso trocista dizer:

— Não vejo qualquer descontentamento nas ruas, o povo é sagaz, gosta da Geringonça, está sereno, e a protestar só vi meia dúzia de amarelos.

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