A notícia que vem da Colômbia é de que o candidato da esquerda, Gustavo Petro, é o favorito para as eleições presidenciais em maio. Poucas vezes o campo progressista chegou tão perto, e, em todas, a direita não respeitou o pacto democrático. Ou seja, reagiu com violência. Desta vez, no entanto, mesmo com as tentativas de roubo de votos e fraude, a esquerda avança. É como se depois da guerra de 50 anos, finalmente as pessoas pudessem votar por uma segunda chance sobre a terra.
O processo eleitoral deste ano na Colômbia pode abrir um novo capítulo na história do país. Depois da guerra que durou mais de 50 anos entre o Estado e a guerrilha, esta é a segunda vez que os colombianos vão às urnas para escolher o presidente, e o candidato da esquerda está há semanas disparado nas pesquisas – já tem mais de dez pontos percentuais de vantagem sobre seu principal opositor. Além isso, pela primeira vez o campo progressista elegeu a maioria no Senado e uma grande bancada na Câmara de Representantes. É como se depois de meio século de guerra, a população finalmente começasse a se expressar nas urnas.
Nesta quarta-feira (23), foi definida a chapa presidencial da coalizão Pacto Histórico – uma união de distintas forças da esquerda. Ao lado de Gustavo Petro, estará Francia Márquez, uma advogada, política e líder ambiental cuja trajetória é marcada pela luta em defesa de seu território. Com mais de 786 mil votos, ela foi a terceira pré-candidata mais votada entre todas as opções, de todas as chapas, nas primárias do dia 13 de março.
Na Colômbia, diferente do Brasil, a eleição é realizada em etapas: primeiro acontecem as legislativas, além das primárias, para que sejam indicados os candidatos à presidência. E na sequência os eleitores voltam às urnas, meses depois, para escolher o presidente. De acordo com as últimas pesquisas divulgadas, Petro dispara à frente com 37%, seguido de Fico Gutiérrez, que está com 19%; Adolfo Hernández, com 16%; Sergio Fajardo, com 12% e Ingrid Betancourt com 2%.
O desastre da administração do atual presidente Iván Duque, de extrema direita, pode ser uma explicação para o candidato apoiado por ele, Sergio Fajardo, estar tão longe da vitória. O governo Duque não respeitou o acordo de paz com as Farc, e a violência cresceu vertiginosamente no país. Diariamente são assassinados líderes sociais, ativistas, dirigentes sindicais. A falta de habilidade para lidar com a violência num território marcado pela guerra e pelo narcotráfico, e a subserviência perante aos EUA, farão com que Duque seja lembrado como um dos piores presidentes da história recente da Colômbia.
Com o avanço de Petro, essa também se torna uma disputa perigosa. Todas as vezes que um candidato do campo progressista chegou perto de ser eleito presidente, a direita tratou de resolver o impasse da forma mais visceral possível: assassinato. Não são poucos os analistas políticos, intelectuais e jornalistas colombianos que vem alertando para a necessidade de Gustavo “tomar cuidado”.
Se não for na bala, a outra solução da direita é puxar o tapete. Um dos episódios mais marcantes de fraude eleitoral aconteceu em meados dos anos 1970, quando o favorito para vencer as presidenciais, o general Gustavo Rojas Pinilla foi tirado do jogo, em meio a denúncias, e quem assumiu foi o direitista Misael Pastrana Borrero. A revolta popular foi tamanha, que daí nasceu o movimento de guerrilha urbana M-19, cujo nome é uma alusão à data da eleição que naquele ano aconteceu no dia 19 de abril.
Não importa quantas décadas tenham se passado, o modus operandi segue muito parecido e desta vez, tão logo começaram a ser abertas as urnas das eleições legislativas, pipocaram denúncias de fraudes eleitorais e roubo de votos. O tradicional líder liberal colombiano, Eliécer Gaitán – assassinado em abril de 1948 às vésperas das eleições daquele ano – costumava dizer que “das oito às quatro vota o povo, e das quatro em diante o cartório eleitoral”. E foi exatamente algo assim que aconteceu, porque a diferença nos números oferecidos na pré-contagem e nos resultados finais do processo foi de 7%.
O próprio Gustavo Petro denunciou que em 29 mil mesas eleitorais não foram contabilizados votos para o Pacto Histórico, coisa que parece meio impossível de se acontecer: como pode em dezenas de cidades nem uma única pessoa votar diferente?!. Mas depois de uma ampla movimentação, até de setores da direita, para denunciar as fraudes, 390 mil votos foram recuperados. Com isso, a coalizão da esquerda passou de 16 para 19 senadores.
Durante as eleições de 2018 conversei com o professor e assessor de comunidades indígenas, Héctor Mondragón, sobre o sistema eleitoral colombiano, e a forma como o narcotráfico e o crime organizado agem para influenciar no resultado. Vale dar uma olhada no texto, porque infelizmente as denúncias permanecem atuais.
Comandante Aureliano
Gustavo Petro é economista, político e ex-guerrilheiro. Aos 61 anos, tem uma trajetória política sólida. Foi senador da República duas vezes, prefeito da capital Bogotá, e agora é candidato à presidência pela terceira vez. O crescimento eleitoral dele ao longo dos últimos anos é notável e nos faz ter esperança de que será ele o novo chefe de Estado do país.
Em 2010, ele obteve 1.331.267 votos, o equivalente a 9,1% e se consolidou como a quarta força política. Em 2018, já no primeiro turno conquistou 4.855.069 votos, um total de 25,8%; e no segundo seu desempenho praticamente dobrou, foram 8.040.449. Com esses 41,77%, Petro se firmou como uma alternativa possível para dar fim aos anos de dominação da direita. Nas eleições deste ano, de janeiro até agora, ele já cresceu mais de 10% pontos nas pesquisas, e o seu principal opositor parece inapto para virar o jogo.
Assim como muitos jovens colombianos, num determinado momento da vida, Petro precisou usar um fuzil para defender a democracia. Ele havia acabado de entrar para a faculdade de Economia, e o país afundava em uma nova crise política, após o líder progressista ser tirado do páreo às vésperas de ser eleito presidente. O fato resultou na Guerrilha M-19, de atuação urbana, onde Petro era conhecido como “Comandante Aureliano”. A homenagem do nome é ao personagem de Cem Anos de Solidão, Aureliano Buendía, o comandante liberal que “travou 32 revoluções armadas e perdeu todas”, o anti-herói latino de Gabriel Garcia Márquez dedicado às causas perdias.
Mesmo quando era guerrilheiro, e depois, reintegrado à vida civil, Petro sempre foi ligado aos Conselhos municipais da cidade onde viveu, Zipaquirá. Mais tarde, como político institucional, teve sua carreira marcada pela denúncia dos escândalos de corrupção do país, dentre eles o caso Odebrecht e sua relação com o Ministério Público; também agiu no combate ao narcotráfico e, como senador, escancarou as relações entre os paramilitares e os políticos que ocupavam 35% do Senado. Essas denúncias resultaram numa caça aos “narcomarajás” e, até hoje, mais de 60 parlamentares já foram condenados.
Quando foi prefeito de Bogotá, Petro implementou “o mínimo vital gratuito de água potável” para os extratos mais pobres; desenvolveu políticas públicas que tiraram meio milhões de cidadãos da pobreza, de forma a reduzir o indicador de desigualdade ao ponto mais baixo do século. Também se dedicou às políticas de gênero, criou a Secretaria da Mulher de Bogotá, e a “Línea Púrpura”, programa dedicado a cuidar de vítimas de violência de gênero.
Como presidente, terá pela frente um imenso desafio, o terceiro maior país em extensão territorial da América Latina, marcado por séculos de guerra, corrupção, domínio do narcotráfico, dos paramilitares e da política externa nociva dos Estados Unidos que está presente com oito de bases militares no país.
Francia Márquez
Gustavo Petro não poderia ter encontrado uma companheira de chapa melhor. Francia Márquez tem o rosto e a potência da resistência colombiana. Uma mulher de 35 anos, negra, mãe solo, líder ambiental, advogada e política.
Francia Márquez vem de Cauca, região do pacífico colombiano, e muito jovem, aos 15 anos, se viu obrigada a se transformar em líder ambiental para defender seu território de uma represa. Aos 16 deu à luz pela primeira vez, depois de trabalhar nas minas até o dia anterior ao parto, e aos 21 foi mãe novamente. Como milhares de jovens mulheres latino-americanas, para sustentar as duas crianças, trabalhou como empregada doméstica. E foi assim que conseguiu pagar seu curso de Direito na Universidade Santiago de Cali, onde se formou advogada.
Ela se tornou uma das vozes mais potentes do país na denúncia ao extrativismo e aos crimes ambientais. Em 2018 recebeu o Prêmio Goldman de Meio Ambiente – reconhecimento máximo destinado aos defensores da natureza – pelo seu trabalho contra a mineração de ouro ilegal. Para denunciar as operações ilegais, Francia organizou um protesto de mulheres que marcharam por 563 quilômetros, desde La Toma, até Bogotá. Como vítima de deslocamento forçado étnico, atuou nos Diálogos de Paz, realizados por quatro anos em Havana, Cuba, para construir o Acordo de Paz entre o governo colombiano e as Farc, que foi selado em 2016.
Com outros ativistas de Cauca, organizou a Assembleia Permanente das comunidades afrodescendentes para exigir a proteção dos territórios ancestrais e da negritude. Uma mulher que chega hoje como favorita à vice-presidência sem nunca ter abandonado seu território, suas raízes e seu povo.
Dime con quien andas y te diré quien és
Quando o assunto é boa vizinhança, Petro não brinca em serviço. O possível futuro presidente da Colômbia é muito bem relacionado com o campo progressista da América Latina e compõe este movimento de reação da chamada “onda rosa”, para restabelecer a esquerda no continente.
Foi visto recentemente fazendo coração com o presidente eleito do Chile, Gabriel Boric. Aproveitou a festa da posse, em Valparaíso, para estreitar relações com a esquerda europeia e saiu em selfies sorridentes com a ministra da Igualdade da Espanha, Irene Montero, e o líder trabalhista inglês, Jeremy Corbyn.
Depois do retorno dos governos progressistas na Argentina, Bolívia e Chile, agora pode ser a vez da Colômbia, e na sequência o Brasil – com as eleições de outubro deste ano. Caso Petro seja eleito, esta será a primeira vez que a Colômbia vai entrar no circuito dos progressistas e pode jogar um papel importante para o processo de construção da unidade e integração no continente.
O Pacto Histórico, com Petro e Francia, representa uma lufada de esperança não só para a Colômbia, mas para a América Latina. A frase que dá o título desta matéria vem do clássico colombiano Cem Anos de Solidão, porque o desafio dos latino-americanos é conseguir mudar os rumos dos pergaminhos de Melquíades, e consolidar “uma segunda chance sobre a terra”. Quando o acordo de paz foi firmado, em 2016, o então líder das Farc, Timoleón Jiménez, anunciou que, com o fim da guerra, a Colômbia teria essa nova chance. Como se diz em espanhol: ojalá!
por Mariana Serafini, Jornalista e especialista em América Latina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) | Texto em português do Brasil
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