Algumas reflexões, com o exemplo de AlcañicesNão pretendo dizer que a História de Portugal não tem mitos, nem ideias feitas. Claro que tem. Alguns custam a morrer. E são repetidos à exaustão. Felizmente, os livros mais cuidados procuram combater esses mitos, que passam ao nível de manifestações folclóricas.
Também a História, noutros países, tem os seus mitos, quase sempre de teor nacionalista ou religioso. Felizmente, a crítica histórica existe, e em cada país esforça-se por realizar uma tarefa semelhante, desmistificando imagens, pelo menos a um nível científico.
Em poucos lugares, porém, a História permanece tão mistificada como num lugar de que quero falar. Refiro-me a Olivença. E é triste ver, em 2018, que a situação não se tem modificado substancialmente.
Curiosamente, o papel de mistificador é atribuído aos portugueses, acusados de se deixarem levar por um nacionalismo retrógrado, e por uma visão unilateral da História.
Penso, todavia, que esta opinião, que depois é cuidadosamente “alicerçada” por visões alternativas à portuguesa, está, ela própria, repleta de preconceitos, mitos, e omissões. Basta ver, nos documentos “turísticos” de Olivença, o que é dito. A História é resumida a meia dúzia de linhas. E de que maneira! Diz-se que Olivença foi fundada por Templários espanhóis (por vezes, mais correctamente, por templários leoneses… o que é importante, pois a Espanha não existia) no ano de 1230 (mais ou menos), o que é exacto. Fala-se depois (de forma quase sempre geral) que Olivença passou para Portugal em 1297. E resume-se a História à sua recuperação por Espanha em 1801, numa “integração definitiva em Espanha”.
Nem uma palavra para os quinhentos anos de História portuguesa da localidade. Dir-se-ia que Olivença permaneceu, gemendo, ocupada por Portugal, suspirando pela libertação. Claro, não se fala (a não ser nas páginas de propaganda turística) dos inúmeros monumentos construídos, todos portugueses, com destaque para a Igreja da Madalena, antiga catedral manuelina. Muito menos das muralhas estilo “Vauban” dos séculos XVII-XVIII, e ainda menos da defesa de Olivença pelos seus habitantes, tantas vezes heróica, contra os atacantes espanhóis na Guerra da Restauração. Recuando no tempo, não se diz que Olivença era a 13.ª cidade portuguesa, no século XVI, em número de habitantes, e que nela nasceu o pai de Vasco da Gama, bem como inúmeros navegadores lusos. Quantos oliventinos sabem que há três Olivenças no Brasil, e que existiram uma em Angola e outra no Brasil?
São apenas alguns exemplos de (não tenhamos medo das palavras) colonialismo exercido pela administração espanhola em Olivença. Não há outro nome possível. E que, e isso é intolerável por vezes, se mantém em 2018. Nem se coloca o problema da legalidade da soberania sobre a cidade. A História de Olivença foi a que foi, e nada pode mudar isso.
Por vezes, recorro a uma comparação avulsa e imaginária. Vamos refazer a História, e pensar que, por exemplo, Valéncia de Alcántara, entregue em 1297 a Castela-Leão, voltava, em 2018, à posse de Portugal. Como se deduz, a História desta vila seria sempre o que foi: a de uma cidade integrada em Leão, Castela, Espanha, com múltiplos episódios, e arquitectura em conformidade. Imagine-se o ridículo de se resumir a sua História a uma frase como “Valéncia de Alcántara foi portuguesa, passou para Espanha em 1297, e foi recuperada por Portugal em 2018”. Como se sentiriam os locais ao ver a vivência das suas gerações de antepassados omitida desta forma?
Não resisto a referir aqui, mais especificamente, um caso concreto. O da historiografia espanhola em torno do tratado de Alcañices.
Começo por dizer, e procurarei justificar, que é mesmo incrível o que um colonialismo de duzentos anos fez em Olivença. E não falo da violência física. Essa, por ser clara e difícil de esconder, acaba por ser falada.
Num pequeno à parte, por aqui se verá que a violência mais eficaz é, digamos, o colonialismo de mentalidades. Esse, por surgir disfarçado, muitas vezes com apoio pseudo-científico, é pouco visível.
Vejamos, pois, como já disse, o Tratado de Alcañices e o que sobre ele se diz em Olivença. Esclareçamos, desde já, que este tratado pôs fim a uma guerra, surda, com alguns confrontos, de mais de cem anos. Por outras palavras: clarificou o que não estava ainda bem decidido.
Nos séculos XI-XII-XIII, os reinos cristãos do norte da Península Ibérica avançaram para o sul muçulmano. Tratava-se de ocupar o maior pedaço de território possível, e logo surgiram confrontos entre os próprios reinos cristãos. Aragão, Leão, Castela (estes dois, depois unidos), Portugal, efectuaram uma verdadeira “corrida” para o sul. No caso português, tratou-se de ocupar a bacia do Guadiana, para se garantir o moderno Algarve, e dominar o grande rio. Daí que, no início do século XIII, Sancho II tenha avançado pelas suas margens. Elvas, Mourão, Moura, Serpa, Mértola, Alcoutim, Alfagar(?) de Pena, Ayamonte (a foz do Guadiana) foram conquistadas aos mouros em poucos anos. Sancho II mandou mesmo ocupar Aroche e Aracena, e decerto outras localidades.
Entretanto, a guerra civil estourou em Portugal entre Sancho II e o seu irmão Afonso, que, vencendo-a, se tornou Afonso III. Este apressou-se a terminar a conquista do Algarve, mesmo porque outro factor veio causar confusões: o rei mouro da Huelva, rendendo-se aos castelhano-leoneses, e governando o Algarve ocidental, cedeu este aos seus conquistadores. Note-se que tinha ficado acordado que cada reino cristão ficaria com o que conseguisse conquistar, e que, portanto, nada havia a discutir. Mas os soberanos Castelhanos não resistiram a fazer pressão sobre Afonso III. Este, vencedor duma guerra civil que enfraquecera Portugal, e desejando, acima de tudo, garantir para si todo a Algarve, acedeu a assinar a Tratado de Badajoz de 1267, recuando para o Guadiana, ainda que colocando várias reservas. Tratou mesmo de levar a que Castela, por ser o príncipe herdeiro Dinis neto de reis castelhanos, disfarçasse a entrega de territórios a sul e eventualmente a leste do Guadiana como uma herança.
Isto significa que todos estes soberanos procuravam aproveitar-se das fraquezas dos outros, sem muitos escrúpulos. D. Dinis não hesitou em tentar saborear uma certa vingança contra o tratado de Badajoz de 1267, e, aproveitando-se de dificuldades em Castela, recuperou alguns dos territórios, desistindo de outros, e conseguiu, no Tratado de Alcañices de 1297, definir as fronteiras com o vizinho. Muitas destas povoações estavam quase desertas nas regiões alentejanas, a sua população era reduzida, e heterogénea, desde mouros e judeus a cristãos que tinham vivido sob domínio mouro e que falavam dialectos latinos ou berberes e mesmo árabe.
No Tratado de Alcañices fala-se em várias povoações, nomeadamente Aroche, Aracena, e Ayamonte, de que Portugal declara prescindir.
Oliventinos bem intencionados há que, referindo Alcañices, seguem o discurso “patrioteiro” espanhol, e se referem a Olivença como uma aquisição do que era espanhol (esquecendo-se que a Espanha não existia, e devendo dizer “castelhano-leonês”), numa lógica perfeitamente definida que visa apresentar a ocupação espanhola de 1801 como uma espécie de devolução a Espanha do que lhe pertencia. Estes autores chegam ao cúmulo de transcrever só o parágrafo do Tratado de Alcañices que diz respeito a Olivença, omitindo ou não Campo Maior e Ouguela, e ignorando (!) as referências a Herrera de Alcántara, Esparragal, Valéncia de Alcántara, e, como já se disse, Aroche, Aracena, e Ayamonte. Esquecem-se, também, de explicar que estas três últimas começaram a existir “cristãmente” como portuguesas; que foram arrebatadas a Portugal em circunstâncias pouco dignas pelo Tratado de Badajoz de 1267; e que Olivença foi povoada por alentejanos e portugueses em geral depois de Alcañices. Os primitivos habitantes, talvez uma centena de uma aldeia em redor duma fortaleza templária, terão, muitos, ido para Aroche e Aracena, Herrera, Valéncia, vindo talvez destas povoações outros habitantes para Olivença. Só então se define uma língua (a portuguesa) para Olivença. Os ditos autores esquecem-se de dizer que é quase impossível serem descendentes da primitiva centena de habitantes de Olivença, sendo, sem dúvida, descendentes dos possivelmente cerca de mil habitantes chegados, pensa-se, por volta de 1298 (primeiro foral de Olivença.
Inútil será dizer que, nesta versão muito patrioticamente espanholada, a rainha de Castela (Maria de Molina) surge como uma dama fraca e injustiçada, que levou à derrota do seu reino nas contendas fronteiriças, enquanto os portugueses, forçados a assinar o Tratado de Badajoz, surgem como “voluntários”, e não condicionados por factores adversos, a ceder as povoações fronteiriças tomadas aos mouros!
Esta linha de pensamento, com a História “distorcida” e adaptada a uma fé de tipo nacionalista, atingiu alguns oliventinos conscientes do seu passado português. O que não fará aos espanhóis em geral?
É muito triste o colonialismo!