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Sábado, Dezembro 21, 2024

Como Mário Quintana poetizou a comovente morte de Tolstói

Na madrugada de 28 de outubro de 1910, durante o outono russo, o escritor Liev Nikoláievich Tolstói saiu às escondidas de Iasnaia Poliana, sua casa de campo. Pela manhã, mesmo com a saúde debilitada, iniciou uma viagem de trem, em busca de “solidão e silêncio”. Acometido no percurso por uma pneumonia, teve de desembarcar na estação de Astapovo, onde o acomodaram na casa do chefe da estação. Ali, entre um e outro delírio, o “velho Leon Tolstói” faleceu, em 7 de novembro.

Teria Tolstói (1828-1910), expoente da melhor literatura realista da Rússia, autor de clássicos como Guerra e Paz (1869) e Anna Karenina (1877), morrido na amargura, tomado por sentimentos de desilusão e enfado? Ou estaria algo conformado, realizado em sã consciência, do alto de seus 82 anos?

Em Poema da Gare de Astapovo, o gaúcho Mario Quintana (1906-1994) reinterpreta a morte do escritor russo. Para Quintana, Tolstói “fugiu de casa” e “sentou-se a um velho banco”, desses comuns “em todas as estaçõezinhas pobres do mundo”, a exemplo de Astapovo.

“E então a Morte,
Ao vê-lo tão sozinho àquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali à sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!”

Os biógrafos citam a carta deixada pelo escritor à sua esposa, Sophia Andreevna Behrs – a condessa Sophia Tolstói –, quando ele deixou Iasnaia Poliana. O amplo e confortável casarão ficava na província de Tula, uma região a 200 quilômetros de Moscou. Foi nessa mansão que Tolstói nasceu – e foi lá, também, que voltou a viver ao se casar com Sophia, em 1862. 

Com o Poema da Gare de Astapovo, a trágica e comovente morte de Tolstói ganhou uma poesia à sua altura

 

Depois de 48 anos de matrimônio e 13 filhos – dos quais cinco sequer completaram dez anos de vida –, a relação do casal se deteriorou. Espécie de “faz-tudo” do célebre marido – secretária, editora e contadora –, Sophia passou a nutrir um ciúme crescente por Tolstói nos últimos meses de convivência. Mais do que isso, não suportava mais a condescendência do marido com tanta gente que dele se aproximava. Não entendia, por exemplo, por que Tolstói fazia tanta questão de doar propriedades da família. 

A esposa estava particularmente irritada com o oportunismo de Vladimir Chertkov, um “oficial aristocrático da antiga cavalaria”, que ludibriou Tolstói e forjou um documento para lhe roubar os direitos autorais. É verdade que Chertkov foi um dos mais bem-sucedidos divulgadores da obra tostoiana, mas sua obsessão em passar por cima da família do escritor deu margem a férreos litígios na Justiça. 

Tolstói, cada vez mais simpatizante do estilo de vida simples e abnegado, ignorava os apelos da mulher e dos parentes. Para Sophia, a gota d’água foi a decisão do escritor de abrigar, em Iasnaia Poliana, alguns discípulos de suas confusas ideias filosóficas, que misturavam anarquismo, georgismo, ascetismo e cristianismo. 

Segundo o crítico literário Pedro Mexia, Tolstói “já não era apenas um escritor, mas um profeta: do anarquismo, do pacifismo, do cristianismo dissidente. Vivia rodeado de devotos (…) e era de certo modo um refém do seu séquito”. À esposa – que “tinha transcrito todos os textos do marido, gerido a quinta e as finanças, tinha sido amante, enfermeira e mãe de 13 filhos” –, restou a indiferença. “Agora era tratada como uma inconveniente e uma histérica.”


Tolstói e Sophia, em 1908: 48 anos de casados, 13 filhos e uma firme parceria

Para o jornalista britânico James Meek, Sophia temia a aproximação de Tolsói e Chertkov. Ainda que “Tolstói prometesse nunca deixá-la e diga que a ama”, sua esposa “começa a gritar histericamente quando vê ‘a figura odiosa de Chertkov’”. Pior: “Passa a acreditar que Tolstói e Chertkov estão tendo um relacionamento homossexual e convida um padre para exorcizar o espírito maligno de Chertkov da casa. Rasga um retrato de Chertkov em pedaços e o joga no vaso sanitário”.

“Desistindo do mundo”

Na madrugada em que decidiu partir da casa de campo, Tolstói não dormiu. Por volta das 3 horas, guardou uns poucos pertences numa mala. Em seguida, escreveu a tal mensagem de despedida a Sophia, em termos que, à primeira vista, procura isentá-la de qualquer responsabilidade naquela decisão:

Minha partida te causará sofrimento, e tenho pena que isso aconteça; mas peço-te que compreendas e que acredites que eu tinha de fazer isto. Minha posição nesta casa está se tornando – já se tornou – intolerável. Além do mais, não posso continuar a viver no luxo que tem me rodeado, e estou fazendo aquilo que as pessoas da minha idade fazem muitas vezes: desistindo do mundo, para passar meus últimos dias em solidão e em silêncio.”

 

Mas Tolstói não estava tão indulgente assim com a esposa, de modo que acrescentou na carta:

Seu estado excessivamente excitado, raiva e doença… seu humor atual, seu desejo e tentativas de suicídio, mostram mais do que qualquer outra coisa sua perda de autocontrole… Não é uma questão de você realizar algum desejo ou comando meu, mas apenas em sua estabilidade, em uma relação tranquila e sensata com a vida. E, enquanto você não tem isso, a vida com você é sem sentido para mim.”

 

O escritor acordou seu médico, Dushan Makovitsky, e a filha mais nova, Alexandra, a Sasha, orientando-os a se vestirem para sair, sem dar explicações mais detalhadas. Deixaram a casa de campo às 6 horas, de carruagem, rumo à pequena estação de Shchekino. Nas palavras de William Nickell, autor de A Morte de Tolstói, “o russo vivo mais famoso embarcou em uma jornada final que se tornaria uma das grandes lendas do século 20”.

Tolstói comprou bilhetes de “terceira classe” para uma viagem de trem pela Ferrovia Ryazan-Kozelsk. O médico o acompanhou, enquanto a filha voltou para casa. “Na ficção de Tolstói” – lembra Pedro Mexia –, “os comboios são em geral símbolos lúgubres”. Tome-se o exemplo de Anna Karenina, uma de suas personagens mais marcantes, que morre ao se jogar nos trilhos de uma estação. “Mas o médico nota que desta vez o escritor vibra com o sentimento de liberdade oferecido pelo comboio. A certa altura, Tolstói levanta-se e dirige-se à plataforma traseira da carruagem, onde fica a sentir o vento que passa rápido entre as árvores, a neve, a noite”.

Na primeira noite, de 28 para 29 de outubro, escritor e médico pernoitaram no mosteiro Optina Pustyn – um retiro espiritual que foi muito frequentado por outro gênio da literatura russa, Fiódor Dostoiévski. Ao amanhecer, dirigiram-se ao Convento de Shamardino, onde Tolstói visitou sua irmã Maria. Foi aí, no convento, que Sasha reencontrou o pai e se somou em definitivo à fuga.

Ainda em Shamardino, Tolstói manda um telegrama para Sophia. No texto, reitera que não voltará mais para casa e pede que a esposa não vá a seu encontro. Transtornada, abatida, Sophia para de comer e não fala mais com ninguém. Àquela altura, os jornais já noticiam o desaparecimento do escritor, e a polícia passa a procurá-lo. 

“Últimas palavras”

Na manhãzinha de 31 de outubro, ao lado do médico e da filha caçula, Tolstói segue viagem. O trem vai na direção de Rostov-on-Don, mas o escritor parece sem destino estabelecido. Ao longo do percurso, prega a não violência aos passageiros – e também fala coisas sem sentido.

É a derradeira viagem do grande autor russo. Quem intercepta Tolstói – antes dos policiais, dos repórteres ou da família – é um resfriado. O comboio da terceira classe está lotado – de gente e de fumaça. Nesse ambiente insalubre, o resfriado evolui para a pneumonia. Com febre alta, o escritor sofre um desmaio.

Aflitos, o médico Makovitsky e a filha Sasha resolvem fazer uma parada na estação seguinte, na pequena aldeia rural de Astapovo, província de Riaz. Já é fim de tarde quando chegam ao local e conseguem desembarcar. Ivan Ozolin, o chefe de estação, reconhece Tolstói e, solícito, o conduz à sala de sua casa.

O moribundo escritor é acomodado numa cama que viria a ser seu improvisado leito de morte. De imediato, recebe injeções de morfina e cânfora. As sensações de melhora são pontuais, efêmeras. Ao contrário: Tolstói emagrece, agoniza e delira por seis dias. 

Um de seus últimos pedidos é ver Chertkov, que o visita em 2 de novembro. A família e a imprensa igualmente o descobrem em Astapovo – o que atrai um turbilhão de repórteres e fotógrafos à estação. Especialistas apontam o martírio de Tolstói como o primeiro espetáculo midiático na história da Rússia. Agências internacionais fazem despachos direto de aldeia.

“O resultado do escrutínio público da morte de Tolstói foi que todos aqueles mais próximos a ele no final – mesmo aqueles que ele encontrou por acaso – saíram com suas próprias versões de eventos”, escreve James Meek. “Seis médicos mantiveram registros separados de seus últimos dias. Espiões do governo enviaram relatórios secretos para São Petersburgo.”

Sergei é o primeiro filho a dar às caras, também em 2 de novembro, no começo da noite. Sophia e os outros filhos aparecem horas depois, na primeira classe do trem. Tolstói, firme em suas convicções, não quer estar com nenhum parente, muito menos com Sophia. Proibidos até de ingressarem na casa do chefe da estação, os familiares ficam, então, hospedados no próprio carro de trem que os levou a Astapovo.

Se a família está vetada, médicos têm passe livre. Profissionais examinam e medicam Tolstói, mas seu quadro é irreversível. “Na noite de 4 de novembro de 1910, em estado de delírio, quando sua condição piorou, Tolstói começou a fazer movimentos em seu cobertor com as mãos. Embora estivesse apenas semiconsciente, os que estavam a seu lado interpretaram os movimentos como uma tentativa de escrever”, diz William Nickell. “Esse momento resume a dinâmica narrativa dos últimos dias de Tolstói – seus movimentos foram todos gravados e vigorosamente interpretados na mídia russa.”


Tolstói, em Astapovo, no leito de morte: agonia e delírio no outono de 1910

Na noite de 6 de novembro, o escritor profere suas últimas palavras – “eu amo a verdade” – e entra em coma. Sophia, enfim, é autorizada a ver o marido. Como se apenas lhe restasse esse reencontro, Tolstói morre nos braços da esposa, às 6h05 de 7 de novembro de 1910. Não houve extrema-unção – o escritor fora excomungado da Igreja Ortodoxa Russa em 1901.

“Sonhos da infância”

“Em vez de ‘desistir do mundo’, Tolstói viveu intensamente o mundo nos seus últimos dias, e não ‘em solidão e em silêncio’, antes numa espécie de entusiasmo, angústia e agitação juvenis. Quem não quis alguma vez fugir de casa?”, resume Pedro Mexia.

“E quem sabe se até não morreu feliz”, verseja Mário Quintana, poetizando os instantes finais de Tolstói. Pois:

“ele fugiu…
Ele fugiu de casa…
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade…
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!”.

O chefe da estação converteu sua casa em Astapovo num ponto turístico, conforme narra o jornalista William Brumfield, do Russia Beyond: “Ozolin decidiu manter o quarto como estava na época da morte do grande escritor. A sombra da cabeça e do tronco reclináveis de Tolstói lançados pela lâmpada de cabeceira foi delineada no papel de parede e preservada. Dentro de um dia, uma placa comemorativa apareceu em uma das portas da sala. O relógio da estação foi parado às 6:05”.

Em 8 de novembro de 1910, um dia depois da morte de Tolstói, o cortejo fúnebre se deslocou de Astapovo para Iasnaia Poliana. O escritor russo foi enterrado na manhã seguinte, dia 9, na mesma casa de campo onde nasceu. De acordo com William Nickell, “nos meses que se seguiram à morte de Tolstói, o interesse pelo escritor permaneceu no auge. Publicações foram impressas, incluindo numerosas edições de cartas e obras inéditas. A mais significativa delas foi a coleção de três volumes de seus trabalhos póstumos editados e publicados por Chertkov entre 1911 e 1912”.

Em 1918, com a Rússia já sob o regime socialista liderado por Lênin, Astapovo foi rebatizada: virou a cidade Lev Tolstói. Quase seis décadas depois, no ano de 1976, Mário Quintana publica Poema da Gare de Astapovo entre as 146 poesias de Apontamentos de História Sobrenatural. Tema de debates, livros e filmes, a trágica e comovente morte de Tolstói finalmente ganhava um poema à sua altura.


Poema da Gare de Astapovo

por Mário Quintana

O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua…
Sentou-se …e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Glória,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E então a Morte,
Ao vê-lo tão sozinho àquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali à sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta…)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu…
Ele fugiu de casa…
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade…
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!


por André Cintra    | Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado


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