Muitas das revoltas populares nos países da América Latina são provenientes da insatisfação popular diante das medidas de governos ultraliberais.
Desde o mês de outubro, vimos eclodir uma série de revoltas populares nos países da América Latina, muitas delas provenientes da insatisfação popular diante das medidas de governos ultraliberais. A mídia tradicional burguesa se limita a interpretar essas manifestações como algo relativo às demandas específicas, como aumento do preço do combustível ou das tarifas de metrô. Mas estamos diante de rebeliões num continente em que é cada vez mais estratégico às disputas imperialistas e às lutas de classes.
Nesse cenário em que os governos progressistas da América Latina estão em decaída, seguidos por governos ultraliberais, vimos o destaque dos movimentos indígenas à frente das mobilizações em casos específicos e peculiares. Analisemos alguns deles:
O papel da Conaie na resistência do Equador
No Equador, o presidente Lenin Moreno anunciou um pacote de ajustes para cumprir as metas impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Entre as medidas impopulares, o fim do subsídio aos combustíveis, aumentando o preço da gasolina em 123%, o que gerou uma onda de protestos nas ruas do país. Diante da insatisfação popular, a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) realizou uma série de marchas pelo país, fazendo o presidente transferir a sede do governo equatoriano de Quito para Guayaquil.
Com do aprofundamento das manifestações, Lenin Moreno recuou e revogou as medidas impopulares. Apesar da vitória, hoje a Conaie tem denunciado a prisão de indígenas por parte do Estado, acusando-os de terrorismo nos protestos de outubro. Vemos que a situação no Equador foi uma conquista temporária, pois o governo de Lenin Moreno continua a serviço dos interesses do grande capital, demonstrando a capitulação do Alianza País, partido de Moreno e do qual Rafael Correa se desfiliou em 2018.
Os indígenas, que representam cerca de 25% da população, estão organizados e acatam as decisões da Conaie, demonstrando a força do movimento, que conseguiu dar um tom mais incisivo nos protestos de outubro, garantindo o recuo do governo de atender às exigências do FMI, à revelia da população. Na população pobre no Equador, 68% são indígenas e estariam diretamente prejudicadas com as medidas.
Fundada em 1986, a Conaie protagonizou diversos movimentos na década de 90, derrubando ex-presidentes contra suas medidas impopulares. A Conaie tem sua atuação partidária através do Movimento de Unidade Plurinacional Pachakutik-Novo País (MUPP-NP). Conhecido apenas como Pachakutik, é um partido de esquerda indigenista que participa das eleições desde 1996, disputando parlamentos locais, prefeituras e alcaides (denominação para os presidentes de câmaras municipais que exercem também o Poder Executivo).
O movimento dos mapuches no Chile
Enquanto isso, no Chile, a população foi às ruas contra o aumento na passagem do metrô em Santiago. Em resposta, o presidente Sebastian Piñera decretou estado de emergência e colocou o exército para reprimir os protestos, coisa que não acontecia no país desde o fim da ditadura de Pinochet. Apesar do recuo do governo em aumentar a tarifa, os protestos geraram uma onda de insatisfação contra as políticas ultraliberais de Piñera. O governo tem dado resposta com mais repressão, surgindo casos de prisões arbitrárias e torturas, bem como o registro de centenas de manifestantes que ficaram cegos após disparos de balas de borracha da polícia.
Nesse contexto, viralizou na internet uma foto da maior manifestação em Santiago no dia 25 de outubro, com cerca de 1,2 milhão de pessoas, onde no topo da estátua é hasteada a bandeira dos mapuches, povo indígena da região centro-sul do Chile. Com a redemocratização do país na década de 90, os povos mapuches reivindicam o reconhecimento da diversidade étnica e cultural chilena, bem como a desapropriação de terras privadas para a criação de assentamentos de comunidades indígenas, entrando assim em conflito com o uso das riquezas naturais para os interesses do capitalismo.
O tensionamento das relações entre estado chileno e mapuches originou a bandeira de autonomia indígena, conflito este que se estende por todo o período democrático chileno. Com a eclosão dos protestos, as pautas dos povos mapuches começaram a tomar notoriedade, resultando nas marchas do último dia 14, quando se completou um ano da morte de Camilo Catrillanca, agricultor mapuche de 24 anos que foi assassinado em uma operação policial no sul do Chile.
Em alguns protestos é comum ver a derrubada de estátuas que representam conquistadores espanhóis, substituindo-as por representações indígenas, num claro processo de luta pela reescrita da história oficial chilena.
A resistência dos índios contra o golpe na Bolívia
O clima de instabilidade na Bolívia, com a interferência da Organização dos Estados Americanos (OEA), que contestou a vitória de Evo Morales, consequentemente deu aval para os protestos da oposição, protestos esses que visavam perseguir figuras vinculadas ao Movimento al Socialismo (MAS), partido de Evo, bem como a depredação de prédios públicos. Essa situação resultou na renúncia do presidente, pressionado por setores golpistas dentro do exército, mesmo após a proposta de novas eleições por parte de Evo.
Após a renúncia, Evo pediu asilo político no México. A população tem ido às ruas contra o golpe, agora com uma autoproclamada presidente numa sessão parlamentar esvaziada com a ausência dos parlamentares do MAS, que se negaram a participar devido às represálias golpistas.
Diante desse contexto, é perceptível a fragilidade do MAS em manter a resistência contra o golpe, visto que a própria Central Obrera Boliviana (COB) demonstra fraqueza nos chamados aos atos em defesa do estado plurinacional boliviano. Em oposição a essa fragilidade, vemos o grau de resistência dos povos indígenas bolivianos, em especial após os episódios de soldados do exército que rasgaram a bandeira whipala de seus uniformes, bandeira esta que representa os povos originários e o estado plurinacional.
Jeanine Añez, autoproclamada presidente da Bolívia, saiu da sessão segurando uma Bíblia e tem dado declarações xenofóbicas, alegando ser contra o estado plurinacional e declaradamente a favor de um estado branco, cristão e burguês. Essas declarações são verdadeiras afrontas ao povos indígenas, que marcham pelas cidades bolivianas e resistem contra o golpe.
Diante desses casos, que fazer?
A consolidação do capitalismo nos países latino-americanos, devido à subserviência às grandes potências imperialistas, demonstra diversas tarefas que ainda estão em atraso na ordem do dia. Dentre elas, a questão indígena é uma das essenciais, visto que em países como a Bolívia o número de indígenas chega a 62% da população, totalizando cerca de 45 milhões em toda a América Latina.
Em casos como os da Conaie no Equador, é perceptível o recuo limitado pelas pautas imediatas, devido à ausência da consolidação do pensamento revolucionário nas organizações de massa, tarefa a que os comunistas precisam se dedicar energicamente.
José Carlos Mariátegui, um dos primeiros marxistas latino-americanos, expôs na década de 20 do século passado que o problema do índio é identificado com o problema da terra. Após séculos de exploração e submissão, os indígenas têm ainda a reivindicação da terra como uma luta histórica – daí a necessidade de colocar a demarcação das terras indígenas como uma bandeira de luta significativa para o conjunto dos movimentos sociais, na perspectiva de unificação das pautas para a construção de um bloco de lutas do proletariado contra os governos ultraliberais e o grande capital.
Essa luta unificada não pode se limitar ao campo das ideias, mas também naquilo que Mariátegui apontava como “a solidariedade fraterna dos sindicatos” para com as massas indígenas. Ao caracterizar as sociedades autóctones indígenas da pré-colonização com aquilo que Engels definiu como o socialismo primitivo, Mariátegui aponta para a necessidade de uma aliança entre proletários e indígenas, na construção do socialismo científico, uma etapa superior, mas que tem muito a aprender com as sociedades indígenas pré-coloniais, visto que o socialismo indoamericano não pode ser cópia de outros socialismos.
Essa unidade não contesta o proletariado como a classe revolucionária, tal como a unidade proletário-campesina foi essencial para a consolidação da revolução soviética. Mariátegui afirma que “as populações indígenas ou negras escravizadas devem ter a certeza de que apenas um governo de trabalhadores e camponeses de todas as raças que habitam o território os emancipará verdadeiramente, pois só podem extinguir o regime de latifúndio e o regime industrial capitalista e liberá-los definitivamente da opressão imperialista”[1].
Temos um longo caminho de lutas pela frente, visto que a América Latina, devido às suas riquezas naturais e potencialidades econômicas, tem se tornado uma área estratégica para o grande capital. A luta por nossa emancipação e pela construção do socialismo indo-americano traz consigo a luta contra todos os atrasos causados pelo capitalismo imperialista, abarcando assim a luta dos povos indígenas.
A unidade entre revolucionários comunistas e movimentos sociais indígenas é uma tarefa urgente. Mariátegui, num Peru constituído em sua maioria por índios, afirmava que “uma consciência revolucionária indígena pode levar tempo para se formar; mas, uma vez que o indígena fez a própria ideia socialista, vai servi-lo com uma disciplina, uma tenacidade e uma força, na qual poucos proletários de outros meios poderão superá-lo”. Avante na luta por uma América socialista, pois, se somos americanos, seremos uma só canção!
[1] Todas as citações são originais do texto de Mariátegui “Ideologia e Política, Capítulo 1 – O problema das raças na América Latina”
Texto original em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV / Tornado
Publicado originalmente no site do Sintef