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Sexta-feira, Novembro 1, 2024

Como pagar pela pandemia?

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Nesta forma especial de guerra, não há destruição de infraestruturas e equipamentos, mas há mortos, infelizmente muitos, doentes que ficam com sequelas, físicas ou mentais, cujo alcance ainda não conhecemos, e outros doentes que sem ficarem com sequelas passam momentos de sofrimento. E, em todas estas situações, as famílias.

Em Fevereiro de 1940, no início da II Guerra Mundial, John Maynard Keynes publicou um opúsculo intitulado How to pay for the war que desenvolvia ideias por si apresentadas em meses anteriores sobre as medidas que deveriam ser tomadas no âmbito económico e financeiro para que a economia do Reino Unido pudesse funcionar durante a guerra, com um capítulo dedicado às medidas adoptadas em França. Até essa altura o conflito desenvolvia-se essencialmente no mar, mas meses depois a invasão da França obrigou este país aliado a pedir um armistício e a aceitar a criação de uma zona ocupada englobando a maioria do seu território e a integração da sua economia no esforço de guerra alemão contra os britânicos.

How to Pay for the War : A Radical Plan for the Chancellor of the Exchequer

(Ver página 2 do livro)

Keynes, John Maynard, 1883-1946. How to Pay for the War: A Radical Plan for the Chancellor of the Exchequer. London: Macmillan and Co., Limited


Não tem aplicabilidade directa à guerra da “pandemia” em que estamos mergulhados, mas dedica umas páginas à possibilidade de fazer os ricos pagarem mais que a generalidade da população, aspecto que tende a ser um must deste tipo de discussões.

 

Uma entrevista de Susana Peralta ao “i”, “in” ou “inevitável”

Lembrei-me de John Maynard Keynes quando surgiu alguma controvérsia em torno da entrevista dada ao “i” e publicada em 28 de Fevereiro de 2021, pela colunista do Público Susana Peralta com os destaques não infirmados pelo texto da entrevista: “Podia-se lançar um imposto extraordinário a quem não perdeu rendimentos” . “Para a economista, a fatura da crise deveria ser paga por todos, nomeadamente por toda a ‘burguesia do teletrabalho’ para compensar todos aqueles que viram as suas atividades encerradas”.

Artigo pode ser visto em Susana Peralta. “Podia-se lançar um imposto extraordinário a quem não perdeu rendimentos”

Susana Peralta viria a ser defendida no Público pelo Director Adjunto David Pontes, que refere a existência de ideias expressas no mesmo sentido por Luís Aguiar-Conraria e Miguel Poiares Maduro e ela própria haveria de escrever um artigo respondendo às reacções e chamando também em seu apoio Nazaré Costa Cabral, “Presidente do Conselho das Finanças Públicas”.

As reacções parecem-me sobretudo motivadas pela referência da autora à “burguesia do teletrabalho”, que despertou tanto sorrisos, como manifestações de indignação (apesar de a entrevistada se incluir nesse lote), pela ideia de um imposto extraordinário que tem subjacente a qualificação da referida burguesia como privilegiada, apesar de a sua vida quotidiana se ter tornado difícil, particularmente para quem teve de manter os filhos em casa, e pela circunstância de essa ideia ter feito recordar os chamados tempos da troika, mais precisamente o tipo de justificações desenvolvido nessa altura por Pedro Passos Coelho.

Entrevista da Susana Peralta ao i

Na única interacção facebookiana que me permiti sobre este assunto encontrei no post de um conhecido professor de Ciência Política, ele próprio durante muito tempo colunista do Público, o seguinte:

A Doutora Susana Peralta, uma economista supostamente alinhada à esquerda (uma espécie de «tudóloga» sempre a dar moral ao «povinho»…), vem agora propor algo semelhante aos cortes de salários para as classes médias assalariadas, dos tempos negros da Troika (cortes de salários, das classes médias assalariadas do sector público, e de pensões públicas e privadas, mais um «brutal aumento de impostos» transversal às classes médias assalariadas e pensionistas; o capital teve na altura reduções de IRC), via aumento de impostos sobre aquilo que ela chama «a burguesia do teletrabalho» (ou seja, tecnicamente, classes médias assalariadas ou profissões cientificas e técnicas assalariadas, do sector público e privado). É curioso a esquerdista moralista vir propor soluções equivalentes às da Troika!… tenha dó, dôtora!,

Eu próprio já tinha tido oportunidade de zurzir nos textos com que a partir de 2010 João Vieira Pereira, na altura Director Adjunto do Expresso, em artigos seus e de académicos seus conhecidos defendia cortes nas remunerações dos quadros da Administração Pública ou a ampliação de impostos sobre as remunerações dos trabalhadores do sector empresarial “privilegiados” porque titulares de contratos por tempo indeterminado, qualificando a matilha esfaimada por dentadas nas remunerações…dos outros… como um conjunto de “caça salários

O meu interlocutor tinha também comentado um texto de João Vieira Pereira do início da pandemia, de forma que, comentário puxa comentário, em breve estávamos a falar da Dotôra Demagoga a qual, com outros especialistas, queria pôr em causa as verbas inscritas no Orçamento do Estado para 2021 para activos financeiros, indemnizações compensatórias e dotação provisional, por aparecerem descritas como Despesas Excepcionais e por dever o seu valor ser afecto a todos os necessitados a fim de que pudessem comprar pão para pôr na mesa.





As referências a dificuldades em comprar comida para pôr na mesa são sempre obrigatórias, para criar efeito, quando se fala em crise. Na entrevista também vão surgindo e por vezes numa mesma frase parecem estar abarcadas realidades diferentes, como nesta:

Não podem estar sem dinheiro para pagarem as suas contas e andarem a viver numa angústia enorme, a existirem filas enormes para irem buscar comida.”

Do mesmo modo, segundo a entrevistada, muitas pessoas violariam o confinamento para pagar as contas. Mas o leit-motiv da “comida” é um tanto redutor: no ciclo de Guterres a comissão de trabalhadores da IVIMA explicou no Gabinete de Coordenação para a Recuperação de Empresas (GACRE) que as dificuldades da empresa criavam problemas de subsistência que já estavam habituados a enfrentar mas que o problema para muitos trabalhadores era manterem o pagamento das mensalidades dos cursos superiores que os seus filhos estavam a frequentar. Necessidades situadas um tanto acima das necessidades fisiológicas na pirâmide de Maslow…

 

 Afinal, quais os danos infligidos pela pandemia?

Nesta forma especial de guerra, não há destruição de infraestruturas e equipamentos, mas há mortos, infelizmente muitos, doentes que ficam com sequelas, físicas ou mentais, cujo alcance ainda não conhecemos, e outros doentes que sem ficarem com sequelas passam momentos de sofrimento. E, em todas estas situações, as famílias.

E há também danos económicos, e aspecto de que Susana Peralta se ocupa particularmente nas respostas, tipo rajadas de metralhadora, à entrevista – ou não fosse uma das signatárias do manifesto pela reabertura das escolas – danos educacionais, que não me ocuparei aqui.

Nos danos económicos imediatos temos a perda de empregos e de rendimentos, que Susana Peralta vai referindo embora sem os identificar tão claramente como se justificaria nem destrinçar as suas causas, mas as políticas governamentais também nem sempre o fizeram nem construíram respostas adequadas:

  • o fecho de actividades por motivo de confinamento, não apenas a restauração mas em geral todos os espaços que satisfazem necessidades de sociabilidade;
  • as quebras de vendas derivadas da quebra efectiva da procura, inclusive com origem no exterior, e a expectativa de deterioração da situação.

As primeiras teriam exigido imediatamente subsídios estatais com carácter compensatório, mas os apoios efectivamente concedidos partindo de um quadro inicialmente moldado pelo layoff foram sendo objecto de sucessivos ajustamentos.

As respostas às segundas revestiram mais apropriadamente a forma de layoff simplificado que costumo designar por layoff self service.

A esses e a outros apoios específicos deve somar-se a concessão de moratórias e garantias que a colunista do Público assinala na entrevista, mas às quais não atribui grande risco, perspectiva que não partilho dado o forte comprometimento do Tesouro do IAPMEI e do Turismo de Portugal, sem que se conheça a cobertura das suas garantias por contra-garantias das empresas apoiadas.

Há um aspecto importante que Susana Peralta foca mas do qual não retira, a meu ver, todas as conclusões.

O que sabemos desta crise é que as pessoas que não tinham uma relação muito estável com o mercado de trabalho foram as que ficaram mais desprotegidas.

Isto é verdade, não só no que se refere aos jovens, que a entrevistada parece ter em mente, mas também a toda uma serie de gente desempregada desde os tempos da troika, mas encontrou emprego posteriormente em modalidades não totalmente adequadas, ou seja, para além do clássico contrato a termo, que deixou de ser renovado, como o contrato de trabalho temporário, o período experimental prolongado, e o contrato de muito curta duração não reduzido a escrito, que ganharam peso na última concertação social / “feira de gado” (Augusto Santos Silva dixit) que visava reduzir a precariedade. E em muitos casos, como a entrevistada também regista, sem direito a subsídio de desemprego nem possibilidade de aplicação do layoff simplificado.

E aqui parece ter sido uma questão de expectativas que determinou que fossem sendo alijados pelas empresas milhares e milhares de trabalhadores que o poder político se recusou a proteger.

Susana Peralta, preocupada sobretudo com a reabertura das escolas parece considerar o quadro legal como um dado.

 

Como pagar pelos apoios?

 Com todas as imprecisões apontadas do lado dos encargos a satisfazer, o “modelo de financiamento” da colunista do Público é também impreciso e a sua descrição decepcionante:

O dinheiro é sempre um recurso limitado e há três maneiras de o Governo ter mais dinheiro. Uma delas é endividar-se mais – podia ter feito essa escolha, vários países europeus a fizeram. O BCE, há menos de um mês, fez uma comparação entre países e concluiu que Portugal foi o terceiro país da UE que menos gastou em percentagem do PIB para fazer face à crise em 2020. Podemos dizer que quando comparamos com países com uma dívida semelhante, a situação é diferente, mas, ainda assim, Portugal continua a ser um país muito conservador na maneira como gastou o dinheiro. E a escolha de se endividar mais ou menos é sempre uma escolha política, mesmo quando temos uma dívida de 130 e tal por cento do PIB, mas estar neste momento a pensar na dívida quando estamos a impor a setores da sociedade o encerramento compulsivo da sua atividade, e não o estamos a compensar cabalmente, é problemático. A política tem de ser coerente: se não temos dinheiro para compensar essas pessoas, então com que legitimidade estamos a pedir-lhes para não trabalharem? Por outro lado, há sempre a possibilidade de cobrar impostos – é outra maneira de ir buscar recursos. Houve uma parte substancial das pessoas em Portugal que não perderam rendimentos, toda a burguesia do teletrabalho, todas as pessoas do setor dos serviços que, aliás, são as pessoas mais bem pagas, o que também me inclui a mim. Esta crise poupou muito as pessoas que trabalham neste setor e são as pessoas com mais escolaridade. Podia-se perfeitamente ter lançado um imposto extraordinário sobre essas pessoas para dividirmos o custo desta crise. Em terceiro lugar, era ir buscar dinheiro e saber onde se investe o dinheiro. Por exemplo, o voluntarismo, a fuga para a frente de salvar a TAP quando se está a deixar estas franjas da sociedade mais desprotegidas é muito problemática. Mas tudo isto são escolhas políticas.

Surpreendentemente, estas propostas surgem em contraciclo com o aparente consenso europeu que António Costa tem reiteradamente explicado, que é de continuar a nível de cada Estado – membro a realizar despesa, sem quebras, nem elevação da carga fiscal, recorrer à dívida pública, e lançar mega programas de investimentos e medidas a realizar com financiamento comunitário nas áreas de recuperação e resiliência, transição digital e combate às alterações climáticas, com aumento do valor dos recursos próprios comunitários e emissão de dívida em nome da União Europeia e em 2020, 2021 e, prevê-se também para que para 2022, suspensão das regras orçamentais europeias, uma vez que o choque da pandemia foi simétrico, isto é, atingiu todos os países por igual.

O lançamento de impostos extraordinários para financiar apoios seria, neste contexto contraproducente. Até o Director Adjunto do Público, David Pontes, saído à liça para defender a sua colunista, o tem de reconhecer:

Porque este é ainda, em largos traços, o mesmo país dessa crise, com recursos escassos e com necessidade de controlar – mesmo que desejavelmente muito menos nesta altura – o seu défice.

Só o que faltava, digo eu, é criar um choque depressivo através de um imposto extraordinário sobre as classes de consumidores que estão a ajudar a manter a procura e poderão estimular uma recuperação no fim do confinamento.

A dívida terá de ser tida em conta no futuro, como referiu Dombrovskis em declarações de que o Público se fez eco em 4 de de Março último.

Dombrovskis

O que dizemos é que os Estados-membros com um menor risco de sustentabilidade devem continuar a aplicar as medidas de apoio orçamental. Em relação aos países que têm um nível mais elevado de dívida pública, também recomendamos que mantenham as medidas de apoio, mas sejam mais vigilantes em termos do efeito orçamental dessas medidas a médio prazo e o seu impacto na sustentabilidade da dívida.

Mas para retomar algum grau de controlo parece mais sensato trabalhar a partir do sistema fiscal existente e não contar com miríficos impostos extraordinários sobre:

  • os rendimentos de capital auferidos pelos “burgueses do teletrabalho”, nova trincheira de Susana Peralta e David Pontes, uma vez que com taxas de juro correntes praticamente nulas pouco poderá vir daí;
  • os prestadores de serviços de informática de apoio ao teletrabalho e a reuniões virtuais, que devem estar todos sediados na Irlanda.

Aliás se durante a crise os multimilionários se tornaram ainda mais ricos, como veio nos jornais em grandes parangonas, não me admirará que se esteja a falar de um efeito de valorização em bolsas estrangeiras das empresas em sectores, passe a ironia, imunes à COVID-19, ou ligadas à produção de equipamentos médicos e produtos farmacêuticos. Os sobre lucros verificados dificilmente poderão ser por nós tributados. Cabe-nos apenas pagar a factura e não protestar.

David Pontes, Público, de 1-3-2021, Editorial “Burguesia do teletrabalho”.

Susana Peralta, Público de 5-3-2021, “Afinal, onde está a burguesia do teletrabalho?

Nunca vi contudo esta gente defender o desagravamento fiscal dos contratos a termo como forma de compensar as desigualdades que tanto os preocupam..

Nuno Ivo Gonçalves, “Os caça – salários”, Comunicar, 23-11-2010.

Nuno Ivo Gonçalves, “OE para 2021 – Um novo psicodrama orçamental”, Jornal Tornado, 2-12-2020.

 


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