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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

Comprar as próprias dívidas?

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Começam a surgir na comunicação social generalista notícias que chamam a atenção para que não só Luís Filipe Vieira teve o privilégio de ver as suas dívidas, ou mais exactamente os créditos correspondentes às suas dívidas, adquiridas por um comprador no mínimo amigável.

Ainda em 26 de Agosto último, a Revista Sábado, em artigo subscrito por Carlos Rodrigues Lima, Raquel Lito e Bruno Faria Lopes, inseria o seguinte, é certo que também relacionado com o futebol:

Já teve o universo do futebol na mão, foi um dos maiores acionistas de grandes empresas e aventurou-se no mundo dos media. Esta é a história de Joaquim Francisco Alves Ferreira de Oliveira, 74 anos, que em 2005 atingiu o pico da montanha dos negócios, mas acabaria, depois de anos a saltar de financiamento em financiamento, por avançar para a insolvência da Controlinveste SGPS com uma dívida perto dos 750 milhões de euros.

O processo não lhe tirou o sono, já que continua ativo na Olivedesportos e na Sport TV, ao mesmo tempo que negoceia com um dos chamados “fundos-abutre” que comprou as suas dívidas ao Novo Banco e ao Millennium BCP.

Em 15 de Julho de 2020 publiquei aqui no Jornal Tornado um artigo intitulado O mítico valor de mercado que tratava da venda de créditos para cuja leitura não posso deixar de remeter. 

Mantenho a minha percepção de que houve necessariamente um entrosamento entre os bancos vendedores de créditos e os adquirentes, já que a compra de créditos pelos fundos terá como destino mais provável a negociação com os próprios devedores em função da capacidade de pagamento de cada um.

Estando aqui em causa não a venda de créditos públicos, no sentido de originados por relações de direito público, mas de créditos privados, que se rege pelo Artigo 577, nº 1 do Código Civil:

O credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, conquanto que a cessão não seja interdita por determinação das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor.

Poder-se-ia perguntar se deveria existir uma regulamentação específica para as instituições financeiras que:

  • disciplinasse a venda de créditos por parte das instituições, de modo a que se não gerassem as dúvidas suscitadas a propósito da venda de crédito mal parado do Novo Banco;
  • desse ao devedor “ameaçado” pela eventual venda a um credor potencialmente hostil, como um “fundo-abutre”, direito de preferência na aquisição dos créditos das suas próprias dívidas.

Em relação à primeira questão parece-me útil reflectir tanto no plano internacional como no plano nacional, sobre as circunstâncias em que as instituições financeiras devem, fora do quadro de um processo formal de insolvência, necessariamente multilateral, aceitar a redução do valor dos créditos concedidos, renunciando à acção executiva e permitindo a continuidade da entidade devedora, articulando as conclusões com a consideração do valor a considerar como perda para efeitos fiscais.

Pode isso ser até do seu interesse, impondo ou não mudanças na administração da entidade devedora, caso a operação corrente com a entidade devedora seja lucrativa. O mesmo poderá suceder com um fornecedor ou cliente que seja credor da entidade devedora. Mas poder-se-á dar também o caso de a actuação da administração da instituição financeira poder vir a ser caracterizada como infidelidade.

A concessão de direito de preferência ao devedor ou a quem este indicar numa cessão de créditos(i) suscita naturalmente críticas no plano moral, mas oferece um interesse prático significativo.

A este propósito, e retomando o que já escrevi no artigo citado e noutros textos publicados no Jornal Tornado a propósito de créditos públicos:

  • entre Dezembro de 1993 e Setembro de 1996 esteve em vigor o Decreto-Lei nº 400/93, que serviu basicamente para vender créditos por dívidas à Segurança Social em benefício dos devedores sob a forma da sua compra ao “valor de mercado” por instituições de crédito que depois reestruturavam a dívida e reduziam o seu valor;
  • a partir de Setembro de 1996 o Decreto-Lei nº 124/96 permitiu que fossem vendidos créditos fiscais e por dívidas à Segurança Social excluindo contudo que o fossem em benefício dos devedores, dos seus administradores ou entidades com interesse patrimonial equiparável.

Os interessados poderão consultar a filosofia subjacente à actuação. neste período, de cada uma das entidades públicas, compulsando

Em relação à Fazenda Nacional e ao Tesouro:

  • o Despacho nº 5 777/99 (2ª série) do Ministro das Finanças, de 5 de Março de 1999, publicado em 22 de Março;
  • o Despacho nº 17 069 (2ª série) do Ministro das Finanças, de 10 de Agosto, publicado em 1 de Setembro.

Em relação à Segurança Social:

  • o Despacho nº 12 716/99 (2 ª série) do Secretário de Estado da Segurança Social e das Relações Laborais, de 14 de Junho, publicado em 3 de Julho.

Em relação aos aspectos concretamente em discussão, julgo conveniente recordar

  • as Finanças a partir de 1997 começaram, quando se punha a necessidade de manter postos de trabalho, a propor a venda de estabelecimentos como uma universalidade em processo especial de recuperação de empresas e até em processo de execução fiscal, com subsequente falência da sociedade devedora, o que permitia entre outras vantagens, a transmissão dos contratos de trabalho para o adquirente do estabelecimento e a reversão da execução contra responsáveis subsidiários;
  • em relação a disputas de controlo das empresas que levaram a discutir a possibilidade de cessão de créditos foi política das Finanças não as favorecer quando as administrações estavam a pagar as dívidas em regime prestacional; deste modo a Fazenda Nacional não abriu procedimento de alienação no caso da TVI porque a administração entretanto encarregada da empresas tinha pedido plano prestacional de pagamento das dívidas fiscais e estava a cumpri-lo(ii) e pela mesma razão, encerraram o que tinham aberto a propósito da Fábrica de Papel do Ave(iii);
  • as Finanças enviavam uma notificação aos devedores antes da abertura de procedimento de alienação de créditos uma vez que esta não extinguia, no entendimento que era então adotado, o procedimento criminal por abuso de confiança fiscal em que muitos devedores tinham incorrido(iv);

Como já referi no artigo anterior, houve, com a mudança posterior de titulares de cargos políticos, casos em que se fechou os olhos a violações da lei. Uma mesma empresa viu-se livre das suas dívidas à Segurança Social, cujos créditos foram comprados por outra empresa do grupo, conseguiu repetir a façanha com as suas dívidas à Fazenda Nacional, e mais recentemente, figurou na venda de créditos do Novo Banco.

Com o fim das moratórias, muitas garantias do Tesouro, do IAPMEI e do Instituto de Turismo de Portugal vão ser executadas. O que vai o Estado fazer dos créditos em que ficará investido, os quais em rigor ficarão sujeitos a regime de direito privado?

Uma coisa parece certa: ninguém tem medo dos fundos-abutre. Eles serão simpáticos para as empresas devedoras. Quando muito ajudarão os bancos que lhes cederam os créditos a alimentar-se da carne do Estado.

 

Notas

(i) Espero que esta ideia possa ser discutido no âmbito da APDIR – Associação Portuguesa de Direito da Insolvência e Recuperação uma vez que se trata de uma interessante hipótese que ouvi colocar, a título pessoal, a um dirigente desta Associação.

(ii) O caso da TVI teve particularidades que não cabe relatar aqui.

(iii) Também este caso teve algumas particularidades interessantes.

(iv) Diferentemente, a Segurança Social arquivava, após a alienação de créditos, os seus autos de notícia.

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