Cada conflito entre religião, política e direito que emerge na esfera pública é uma oportunidade de aprendizagem do presente, dos sentidos recalcados e harmonizados nas entranhas da sociedade.
Recentemente, exaltaram na esfera pública as discussões sobre religião, fanatismo e fundamentalismo, especialmente após as manifestações de pessoas religiosas, movimentos sociais, autoridades religiosas e políticas contra a interrupção da gravidez de uma criança de 10 anos vítima de estupro. Movimentos denominados “Pró vida” e grupos cristãos intimidaram o médico e os funcionários do hospital onde foi realizado o procedimento. Ilegalmente, uma militante da extrema-direita divulgou dados pessoais da vítima e de seus familiares. Nas redes sociais, as críticas giraram em torno do fanatismo religioso, da imposição de crenças privadas às instituições estatais e do cinismo de líderes e religiosos — que não só acobertam práticas de violência contra mulheres, como também praticam diariamente. Também houve manifestações de solidariedade e proteção a vítima e seus familiares e de punição aos crimes cometidos pelos manifestantes.
Não é a primeira vez, na história recente do Brasil, que demandas de grupos religiosos ganham espaço na agenda política institucional e na esfera pública. As eleições presidências de 2018 foram permeadas dessas discussões. Iniciativas legislativas da bancada religiosa contrárias a abordagem sobre identidade de gênero nas escolas surgiram em diversos Estados brasileiros nos últimos anos. Embora o STF já tenha se posicionado contrário a essas iniciativas, novos projetos de lei que visam controlar materiais pedagógicos e impor doutrinas religiosas nas escolas não param de surgir. Na semana passada, a Câmara Legislativa do Distrito Federal aprovou, em primeiro turno, iniciativa legislativa que proíbe expressões artísticas e culturais com nudez ou que atentem contra símbolos religiosos. A justificativa do projeto de lei inclui a proteção à criança e ao adolescente e a manutenção da família e dos bons costumes.
Nos últimos dias, as investigações do assassinato do pastor Anderson do Carmo também repercutiram nas redes sociais. Operação conjunta do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) e da Polícia Federal, apontam a pastora, cantora e deputada Flordelis como mandante do assassinato do marido. A pastora foi eleita como deputada pelo Estado do Rio de Janeiro com 196.959 votos e pregava a favor da família, contra o aborto e contra a população LGBTQIA+. Nas redes sociais, vídeos comparando os discursos de Flordelis e as evidências de tentativas de assassinatos, traições e brigas familiares ganharam repercussão.
Esses fatos contribuem para que comentários sobre religião, política e democracia ganhem espaço na esfera pública. No entanto, algumas repercussões podem ser mais prejudicais do que positivas para compreensão das disputas teológicas e políticas na atualidade e para análise do crescimento do fundamentalismo religioso.
Em primeiro lugar, prudente questionar aqueles que afirmam que os modos de pensar religiosos devem ser simplesmente descartados por equivalentes científicos. Como adverte Habermas, “a crença cientificista em uma ciência que possa um dia não apenas complementar, mas substituir a autocompreensão pessoal por uma autodescrição objetivante, não é ciência, é má filosofia”[1]. A autocompreensão é imanente ao campo social, ao consciente, e ao inconsciente dos sujeitos, instituído pelas paixões e ações em condições determinadas, que podem agir, cometer erros e corrigi-los na prática cotidiana. A ciência deve contribuir no esclarecimento das ilusões e das crenças infundadas, mas o saber cotidiano será sempre imanente ao ser social. Quando aprendemos algo, alteramos nossa autocompreensão humana[2] e, consequentemente, nossa ação no mundo.
Em segundo lugar, analisar o crescimento do fundamentalismo religioso na atualidade requer expandir o debate para além de questões morais. Apontar a imoralidade daqueles que queriam impedir a criança de 10 anos de interromper a gravidez não é suficiente para barrar futuros eventos como esse, explicar a razão de o fundamentalismo religioso aflorar mais em determinadas condições sociais e períodos históricos do que outros, analisar se há risco de o poder teológico-político prosperar e, ainda, não é capaz de evidenciar a aproximação do fundamentalismo religioso com líderes autoritários no presente.
Além disso, o mero descarte dos modos de pensar religiosos e a redução da discussão ao campo da moral pode resultar no recalque da religiosidade, sem o devido exame, e na perda da compreensão das condições e contradições sociais da atualidade. Cada conflito entre religião, política e direito que emerge na esfera pública é uma oportunidade de aprendizagem do presente, dos sentidos recalcados e harmonizados nas entranhas da sociedade. É ilusório ou ingênuo acreditar que uma minoria fanática impõe seus valores à maioria de forma forçada ou enganosa[3]. Os sentidos ganham corpo quando tem correspondência na realidade concreta. São as condições sociais e contradições do nosso tempo histórico que podem fornecer perguntas e respostas para o crescimento — ou não — do fundamentalismo religioso e de líderes autoritários.
Atualmente, a população vive o resultado de décadas de política neoliberal: hegemonia do capital financeiro, rotatividade de emprego, desvalorização do trabalho manual, aumento do desemprego, expropriação de direitos básicos, encolhimento do espaço público e, por conseguinte, aumento das injustiças sociais, econômicas e políticas. Soma-se a essas condições o que Marilena Chauí denominou de perda da “dimensão do futuro como possibilidade inscrita na ação humana enquanto poder para determinar o indeterminado e para ultrapassar situações dadas, compreendendo e transformando o sentido delas”[4]. A maioria da população hoje não tem qualquer pretensão de futuro e não compreende as condições e contradições do nosso tempo como possíveis de transformação pela ação humana.
Se as relações de produção — materiais e subjetivas — que condicionam a vida no presente não forem enfrentadas e compreendidas, não será surpresa que grande parcela da população apele para formas transcendentais de respostas — divinas ou autoritárias — no campo individual e político. A modernidade recalcou a religiosidade para esfera privada sem atender as necessidades que ela responde. De um lado, alegaram que a religiosidade seria vencida pela razão, do outro, acreditaram que a racionalidade do mercado responderia todas as necessidades humanas e aos simbolismos da experiência social. Na prática, nos tornamos trabalhadores e consumidores, efêmeros e descartáveis. Em sua maioria, sem recompensa pela força de trabalho e sem acesso aos bens e serviços[5].
Ainda, como adverte Chauí, a ideologia da competência, que impõe decisões políticas a técnicos e especialistas, também afastou a maior parte das pessoas das discussões e decisões públicas, materializando a despolitização do nosso tempo. A despolitização pode colocar em risco a ética inerente a política e a solidificação do poder teológico político, base do fundamentalismo religioso. Enquanto o mercado atomiza a população, a religião pode se tornar espaço de coesão social e a política pode ceder lugar à violência, centrada em um líder carismático, que cria e alimenta o medo do outro como origem do mal e a esperança na salvação divina, minando as possibilidades da política e da democracia.
Convém destacar que o poder teológico-político, não a crença, que pode ser prejudicial a política e a democracia. A crença individual não é oposta a democracia. Ao contrário, apenas na democracia é possível a convivência pacífica de diversas crenças, conforme interesse e vontade de cada pessoa ou grupo. O uso da crença como forma de domínio por líderes políticos e religiosos que pode divergir da democracia, quando esses têm a pretensão de substituir a política, espaço da ética e da ação humana, por dogmas e submissão ao poder teológico-político, como poder divino e soberano.
A preocupação com o fundamentalismo religioso na atualidade deve ser acompanhada da compreensão das necessidades que a religião responde e dos espaços que ela ocupa. É um equívoco ver a religião como algo primitivo ou diminuir aqueles que creem. Não parece razoável, também, recalcar a discussão ao campo da moralidade e do cinismo. Se quisermos levar a preocupação do fim da política a sério, devemos procurar os alicerces e fundamentos na despolitização e nas injustiças do nosso tempo.
[1] HABERMAS, Jurgen. Fé e saber. 1 ed. São Paulo: Editora Unesp, 2013. p. 13.
[2] HABERMAS, Jurgen. Fé e saber. 1 ed. São Paulo: Editora Unesp, 2013.
[3] ADORNO, Theodor. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora Unesp, 2015.
[4] CHAUÍ, Marilena. Fundamentalismo religioso: a questão do poder teológico-político. En publicacion: Filosofia Política Contemporãnea: Controvérsias sobre Civilização, Império e Cidadania. Atilio A. Boron, 1ª ed. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales — CLACSO; São Paulo: Departamento de Ciência Política. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo: abril 2006. p. 127
[5] CHAUÍ, Marilena. Fundamentalismo religioso: a questão do poder teológico-político. En publicacion: Filosofia Política Contemporãnea: Controvérsias sobre Civilização, Império e Cidadania. Atilio A. Boron, 1ª ed. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales — CLACSO; São Paulo: Departamento de Ciência Política. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo: abril 2006. p. 127
por Mariana Bicalho, Pesquisadora. Mestra e Doutoranda em Teoria do Direito e da Justiça pelo PPGD PUC Minas, com bolsa CAPES. Atuação: Democracia, Estado e movimentos políticos | Texto original em português do Brasil
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