Na sequela de um Salão Automóvel de Munique onde primaram os construtores do Império do Meio e numa conjuntura em que a indústria parece cada vez mais posta em causa e em que os carros já não serão vistos como o melhor meio de transporte, surgiu a notícia que a Comissão Europeia vai abrir investigação sobre subvenções para carros elétricos chineses.
É verdade que os construtores chineses parecem cada vez mais apostados em vingar na velha Europa, mas para já têm-se limitado a mimetizar a estratégia dos seus congéneres europeus; a chinesa BYD, recentemente chegada à Europa apenas com modelos de gama média e alta, comercializa um carro na China por cerca de 10.000€ com uma autonomia anunciada superior a 200 quilómetros. A BYD, o segundo maior construtor de veículos elétricos do mundo (só ultrapassado por uma Tesla em situação cada vez mais contestada), é um verdadeiro gigante industrial e um dos líderes mundiais na fabricação de baterias e não está sozinha, pois existem mais três grupos, Wuling (veículos comerciais), Geely (donos da Volvo, da Polestar, da Proton e da Lotus) e SAIC (proprietária da MG e com acordos de produção com a norte-americana General Motors e a alemã Volkswagen) entre os dez maiores fabricantes mundiais de veículos eléctricos.
Perante uma concorrência deste peso, a indústria automóvel europeia seguiu as directivas comunitárias que ela própria influenciou, orientando-se para automóveis mais pesados, mais rápidos e mais caros (inacessíveis para a maioria dos consumidores da Europa do sul), precisamente numa altura em que o imperativo de reduzir as emissões de CO2 deveria ter exigido automóveis mais leves, menos potentes e mais acessíveis, e aumentou o preço dos seus produtos. Os fabricantes têm optado por veículos cada vez mais tecnológicos (parcialmente obrigados ou ajudados por normas de segurança, como a NCAP, que até para viaturas puramente citadinas privilegia gadgets de duvidosa ou nula utilidade como o sistema de aviso de transposição da via), pesados e potentes, uma opção que lhes oferece a perspectiva de margens mais generosas, mas é contranatura (a evolução do sector automóvel sempre se baseou na redução do peso e na eficiência motriz) e ecologicamente contraditória, para não falar no escancarar de oportunidade de penetração aos construtores chineses que representa o completo desprezo pelo segmento dos pequenos carros eléctricos, onde um único construtor europeu (a romena Dacia, subsidiária do grupo Renault) parece apostar, mesmo depois de decidida a construção do modelo na… China.
Ainda assim e apesar do assinável aumento das vendas de veículos 100% eléctricos (BEV) nos mercados europeus, só em Junho deste ano a venda daquele tipo de viaturas ultrapassou a de carros com motorização diesel, que com uma quota de 15,1%, superou os 13,4% das motorizações diesel.
No cômputo geral, o grande impulso nas vendas de automóveis chineses, que fez disparar os alarmes em Bruxelas, é ainda pouco relevante, até porque permanecem os elevados custos de transporte do produto acabado e o princípio que para se estabelecer na indústria automóvel é preciso produzir localmente (foi precisamente esta a lógica que nas décadas de 1980 e 1990 trouxe para o continente europeu os principais fabricantes japoneses e levou, já neste século, as grandes marcas alemãs, como a Mercedes ou a Volkswagen, a instalarem-se na China); a BYD já anunciou a intenção de abrir uma unidade no continente e países como a França, a Espanha e a Alemanha lutam para receber este grande investimento industrial.
A grande dúvida, a que nem a ameaça legislativa de Bruxelas responde, é a de saber até onde irá a determinação das marcas chinesas em marcar posição na Europa e se isso implicará, ou não, alguma alteração numa estratégia que para já parece replicar a aposta europeia na centragem da electrificação dos modelos dos segmentos mais altos.
Outra questão pouco falada relativamente à abordagem da Comissão Europeia sobre o que esta considera serem práticas comerciais desleais da China, é a visível dualidade de actuação perante o programa norte-americano de subsídios e benefícios fiscais para empresas ligadas à transição energética, conhecido como Inflation Reduction Act que a própria UE viu como potencialmente prejudicial para a sua base industrial, mas que mereceu pouca ou nenhuma reacção digna desse nome, facto que leva a crer que o verdadeiro objectivo da UE será apenas o de agravar as tarifas sobre os veículos chineses.
Um dos receios prontamente apontados ao Inflation Reduction Act norte-americano prende-se com a possibilidade daquela legislação servir para atrair investimento para os EUA, tanto na indústria automóvel, como no mercado emergente das baterias para carros elétricos, resultando na perda de competitividade do espaço europeu, mas a potencial guerra comercial entre a UE e os EUA (como chegou a ser referida por alguns responsáveis europeus) não está a passar de meras declarações ou ameaças de uma UE que receia de sobremaneira uma crescente competição tecnológica entre os países ocidentais, num momento em que a China controla grande parte das cadeias de fornecimento ligadas à extração e refinação de matérias-primas como o lítio ou o níquel, utilizadas para produzir semicondutores e baterias de carros elétricos, pelo que sairia a ganhar de um desentendimento entre dois dos seus principais parceiros comerciais.
Em resumo: o processo de investigação lançado pela UE deverá concluir-se com um agravamento das tarifas aduaneiras sobre as importações de automóveis da China, a indústria automóvel europeia continuará a produzir veículos desajustados às necessidades e às carteiras da maioria dos cidadãos europeus, mas altamente ajustados à manutenção dos lucros dos seus grandes accionistas.