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O Pharo revisitado
O Pharo – Farol em occitano – é um promontório sobranceiro à entrada do porto velho de Marselha, a Norte do qual os fenícios construíram a cidade, e onde com toda a probabilidade terá existido um farol que lhe deu o nome, mas que desde meados do século XIX é dominado por um palácio imperial, agora transformado em palácio de congressos. Foi este o local escolhido pelos socialistas franceses para a sua magna reunião de 27 a 29 de janeiro, nas suas contas, a octogésima.
O Congresso da Secção Francesa da Internacional Operária (SFIO) realizado em 1905 é aquele onde a contagem começou a ser feita. A SFIO resultou da fusão do Partido Socialista Francês de Jean Jaurés com o Partido Socialista de França de Jules Guesde e o Partido Operário Socialista Revolucionário de Jean Allemane, bem como de outras organizações locais ou regionais.
Esta contagem deixa assim na pré-história do socialismo francês o vasto percurso precedente que abarcou revoluções tão importantes como a de 1848 e a da Comuna de Paris de 1871, a fundação da segunda internacional operária em Paris, nomes tão relevantes como Blanqui ou Proudhon, para não falar de Marx e Bakunin, que não sendo franceses aqui viveram e muito influenciaram o socialismo francês. E também por isso foi importante ouvir o líder socialista francês invocar no seu discurso de encerramento do congresso de 1879 em Marselha, onde Jules Guesde fundou o então Partido Operário Francês.
Posto isto, o problema começa no saber do que se fala, dado que o socialismo é um vocábulo que abarca quase tudo e o seu contrário, incluindo mesmo os maiores monstros da história contemporânea como o sejam Hitler, Estaline ou Mao. O socialismo abarca personalidades como Eduard Bernstein (e eu sou do tempo em que a literatura oficial do PSD apresentava o partido como inspirado por ele) ou Kautsky, e um sem número de outros mais ou menos conhecidos que são marcos essenciais do socialismo democrático e da sua história política contemporânea e de forma alguma podem ser confundidos com os primeiros.
Diga-se de passagem, que problema semelhante se coloca a vários outros vocábulos liberalmente usados, começando por esse mesmo, o de liberal, que tanto se aplica a quem teorizou as vantagens de deixar os pobres morrer à fome (Malthus) como a Keynes, que teorizou a importância da intervenção do Estado na regulação política em favor do emprego.
Deixando por ora de lado essa discussão, deixando igualmente de lado a profunda cisão provocada pelo bolchevismo, e mesmo a outra mais antiga, mas contemporaneamente ignorada, que diz respeito ao anarquismo, mais conhecido entre nós como anarco-sindicalismo (tanto anarquistas como bolchevistas se reclamavam do socialismo) os oitenta congressos de história do PS Francês são uma infindável sucessão de sucessos e desastres, cisões e reunificações, dissoluções e transmutações.
Nas últimas presidenciais o PSF atingiu o seu nadir, ficando abaixo dos dois por cento dos votos. Como várias vezes aconteceu na história, o PSF foi esmagado pelos dois lados do espectro político, por um lado com a emergência de Macron (personalidade dos negócios politicamente inventada pelo PSF ao fazer parte do governo socialista) e por outro pelo ‘insubmisso’ Mélenchon, ele também oriundo das fileiras socialistas, onde de resto o conheci.
Será que o PSF vai conseguir reinventar-se e retomar um lugar de primeiro plano na política francesa? E qual a importância que isso terá para Portugal, para a Europa e para o mundo?
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A tenacidade de Olivier Faure
Para quem pensar que o PSF reduzido à expressão mínima ficou sem espaço para mais divergências, desengane-se, porque em regra, quanto mais pequeno o partido, mais este se divide em alas mais irreconciliáveis.
Ganhando a maioria dos delegados por uma mão cheia de votos – com o seu principal rival a ameaçar pôr em causa o resultado junto das instâncias judiciais – Olivier Faure não tinha uma missão fácil, e a imprensa matinal do dia de abertura do Congresso prognosticava o pior, abundando as primeiras páginas sarcásticas, por vezes acompanhadas de caricaturas, de um PSF moribundo, ou de um Faure a afogar-se reclamando vitória.
Na sala do Congresso predominavam os cabelos grisalhos, os discursos típicos destas circunstâncias – e eu confesso que após décadas de prática, tenho pouca paciência para o estilo – e os pequenas ou grandes reencontros de quem há muito não se encontrava, e que acaba por ser o que mais interessa nestas liturgias partidárias. A presença internacional não ultrapassou o mínimo – o PS português fez-se representar no debate sobre a Europa, o que não aconteceu com outros membros do PS Europeu – mas não creio ter ouvido em geral algo que me parecesse visionário, esclarecedor ou mesmo mobilizador.
Nas reuniões das listas concorrentes, assisti à da corrente maioritária. Olivier Faure apostou numa solução negociada em que os seus rivais aparecem em posições importantes, uma à frente do Conselho Nacional e outro como ‘primeiro secretário delegado’ e trabalhou afincadamente para fazer passar esta solução entre os seus apoiantes que reclamavam antes que os concorrentes fossem postos na ordem.
Creio que se trata do mesmo Olivier Faure que ‘engoliu o sapo’ de uma aliança com os insubmissos de Mélenchon (a vários títulos mais intragáveis do que os comunistas) e que coloca agora a seu lado quem disse dele o que é tão ou mais difícil de engolir.
Por natureza, eu não seria capaz de fazer algo de semelhante e certamente nada me convenceria a votar em candidatos comprometidos ou mesmo ambivalentes perante a agressão jihadista ou putinista, mas com alguma distância reconheço a firmeza e a tenacidade que senti também no aperto de mão fortuito que trocámos.
Mais, a realidade é que a alternativa ao que fez Olivier Faure seria o fim do já grupuscular PSF, e se há sempre quem pense que há situações em que quanto pior melhor, não sou dessa opinião, e penso ter sido mais ajuizado não deixar o barco ir ao fundo.
Posto isto, a navegação à vista, com a única preocupação de se manter à tona de água, não substitui uma necessária visão sobre o que há a fazer e para onde se quer ir, e aqui penso que se o PSF não conseguir transmitir a mensagem de que tem algo a oferecer – que não se confunda com o império do dinheiro pintado com cores woke do Macronismo ou com a tentação autoritária do Melenchonismo – o PSF não tem futuro.
O discurso de encerramento de Olivier Faure foi no total um bom discurso, com um inexcedível começo internacionalista e humanitário, centrado na cidade de Marselha, complementado com posições de condenação inequívoca da agressão putinista e do jihadismo clerical iraniano e afegão; adequada no domínio da ‘cozinha partidária interna’, com algumas boas críticas ao financismo de Macron – algumas excessivas, como o da crítica radical à meritocracia e ao lucro – mas demasiado condescendentes com os aliados insubmissos, ponto que me continua a parecer ser o mais problemático.
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Que perspectivas para o socialismo democrático?
Estou convencido da necessidade da continuidade e expansão de um espaço político partidariamente estruturado que se apresente na continuidade do que é conhecido como a segunda internacional socialista, aqui, a minha primeira divergência com a visão consensual entre os socialistas, é a de que seria necessário rever e reforçar a herança das correntes anarquistas presentes na primeira internacional socialista. Para além disso, penso que a esquerda deveria reler atentamente Adam Smith e recalibrar a sua leitura de Marx, temas a que dediquei um livro que editei há dois anos.
Posto isto, reconheço que a França sobreviveu sem drama (até agora) à hecatombe do socialismo democrático, e que este continua a ser um fenómeno com expressão importante apenas na Europa Ocidental. Em lado algum está demonstrado que se a Europa Ocidental seguir a trajectória francesa, iremos ter necessariamente uma Europa ou um mundo pior. Que o socialismo democrático é a melhor alternativa é apenas uma convicção que partilho com outros cidadãos do mesmo espectro político.
Em qualquer caso, para que o socialismo democrático valha a pena, é necessário que ele saiba ser fiel ao que de melhor existe na sua história, saiba ultrapassar os pontos em que falhou, consiga distinguir o essencial do acessório, e que tenha uma prática que simultaneamente lhe permita responder às aspirações de, senão da maioria, pelo menos de uma parte considerável do eleitorado.
Aquilo que é essencial é a defesa de um sistema assente nos controlos e equilíbrios do poder, nas liberdades, direitos e garantias, no humanismo e em princípios democráticos. Compreender isso não quer dizer que se aposte em blocos centrais apenas focados na rejeição de quem não aceita em parte ou na totalidade estes princípios tidos como a essência do sistema democrático. Entre outros problemas, um sistema de bloco central não assegura controlos e equilíbrios do poder.
Olivier Faure tem diante de sim grandes desafios, que vão desde conseguir evitar a ruptura nos frágeis equilíbrios internos que conseguiu em Marselha à capacidade de mostrar que tem algo a oferecer diferente e melhor do que tem a concorrência.
Do sucesso da operação vai depender mais do que o futuro dele e do seu partido, porque dele também vai depender o futuro do socialismo democrático na Europa e no mundo.