Considera-se que os estudantes e trabalhadores “vulgares” podem regressar à sua “normalidade possível” com máscaras artesanais, mas os estudantes de medicina – de entre todos os mais sensibilizados e preparados para uma situação destas – não?
O Conselho de Escolas Médicas Portuguesas (CEMP) constituiu-se como uma organização de referência com projeção pública. De forma inequívoca o CEMP declarou em 25 de março: “se queremos minorar o impacto deste terrível desafio no SNS e em todo o povo português, teremos de ser rápidos nas decisões a tomar, e eficazes na implementação das decisões já tomadas! O CEMP continuará a manter uma intervenção cívica ativa que entende ser um seu dever e obrigação, de que não se demitirá, mantendo toda a sua disponibilidade para colaborar com as autoridades nacionais” (comunicado CEMP de 25 de março).
Consequentemente, estranha-se que perante o repto do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) para a elaboração de “planos para o levantamento progressivo das medidas de contenção motivadas pela pandemia COVID-19”, o Conselho das Escolas Médicas, contrariando o MCTES e em desarticulação da restante academia, se tenha apressado a deliberar que os alunos do curso de Medicina não terão mais aulas presenciais até ao fim do ano letivo.
Para além da falta de solidariedade institucional, a justificação que o CEMP apresenta para fundamentar a decisão é incompreensível: “atendendo, sobretudo, ao alto risco de contaminação, mesmo com precauções adicionais, quer pela sua localização, na maioria dos casos em ambiente hospitalar, quer pela presença de docentes que são profissionais de saúde, profissão de risco”(!) (comunicado CEMP, 20 abril).
Esperar-se-ia que o CEMP – tendo manifestado preocupação com a diminuição de idas ao hospital pelos doentes crónicos por causa de receio de contágio – tivesse, pelo menos, procurado justificar a ausência de aulas presenciais com a necessidade de mobilização dos profissionais de saúde (docentes) para atender às necessidades da pandemia.
Mas não, o CEMP justifica a ausência de aulas presenciais – para alunos que têm formação específica em saúde e que estão a ser treinados para fazer face a diversas situações de saúde, incluindo as epidémicas – com o “alto risco de contaminação (…) pela sua localização, na maioria dos casos em ambiente hospitalar”(?!) e pela “presença de docentes que são profissionais de saúde, profissão de risco”(?!)
Impõe-se perguntar:
- Como deverá “o povo português” (como o próprio CEMP designa) confiar em deslocar-se aos hospitais?!
- Como confiar em ir ao médico se estes são identificados como fatores de exposição a um risco acrescido?!
- Como confiar no CEMP quando o seu Presidente pretende assegurar que “os hospitais dispõem de ‘zonas limpas’ e de ‘zonas covid-19’, e que há hospitais ‘não covid-19’, todos preparados para manter o funcionamento normal do sistema de saúde” (no qual se incluem atividades de ensino-aprendizagem)?!
- Como não temer ações de discriminação contra profissionais de saúde, que o CEMP identifica como um risco, como aquelas a que se assistem noutros países?!
Acresce à estranheza da decisão e da justificação o facto de personalidades com responsabilidade de docência médica universitária terem assinado uma carta ao Presidente da República onde é sugerida a “libertação” da economia.
Nessa carta os signatários visam que se “ que a atividade volte à normalidade possível dentro do quadro que vivemos, situação fundamental dado o contexto económico que enfrentamos”. Com efeito destaca-se que, de entre os múltiplos médicos e enfermeiros signatários, encontram-se Jaime C. Branco Director da NOVA Medical School da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade NOVA de Lisboa e José Ferreira Machado, o próprio Vice-Reitor da Universidade NOVA de Lisboa, sendo também de salientar a assinatura de Ricardo Mexia, Presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública.
Importa lembrar que uma das recomendações preconizadas pelos signatários é o “uso obrigatório de máscaras por parte de toda a população para reduzir a transmissão do vírus. No caso de se verificar a escassez de máscaras, as mesmas devem ser confecionadas em casa seguindo as instruções do Conselho das Escolas Médicas Portuguesas e de entidades internacionais como o ‘Centers for Disease Control and Prevention’ (CDC) dos EUA” e que o próprio CEMP alertou para “a necessidade do uso obrigatório de máscara, o qual deverá ser especialmente reforçado quando terminar o confinamento caseiro, chamando a atenção das autoridades de Saúde para a necessidade de implementação de metodologias pedagógicas, que expliquem à população a importância do uso de máscara e a forma como a mesma deve ser usada” (comunicado CEMP, 20 abril).
Afinal, em que ficamos?
Considera-se que os estudantes e trabalhadores “vulgares” podem regressar à sua “normalidade possível” com máscaras artesanais, mas os estudantes de medicina – de entre todos os mais sensibilizados e preparados para uma situação destas – não?
Sugere-se que as faculdades, empresas e organizações “vulgares” têm que se adaptar e reorganizar, enquanto as Escolas Médicas se recusam a assumir um papel tangível de exemplaridade?
Pretende o CEMP ensinar aos estudantes de medicina – na preparação para a profissionalidade – que o abandono dos deveres que lhes estão incumbidos é possível sempre que exista risco de saúde pública?
Propõe-se o CEMP demonstrar aos estudantes de medicina que o Juramento que farão é meramente cerimonial porque se lhes nega a aprendizagem prática de:
- (…) CONSAGRAR A MINHA VIDA AO SERVIÇO DA HUMANIDADE;
- CONSIDERAREI A SAÚDE DO MEU DOENTE COMO MEU PRIMEIRO CUIDADO;
- OS MEUS COLEGAS SERÃO MEUS IRMÃOS;
- GUARDAREI RESPEITO ABSOLUTO PELA VIDA HUMANA DESDE O INÍCIO, MESMO SOB AMEAÇA ?
Seria conveniente que o bom nome e a idoneidade do CEMP fossem acautelados, pois algumas pessoas poderão, até, pensar que a instituição está a responder a outros interesses que não os do Ensino Médico e da Saúde Pública.
Alguma coisa não “bate” certo…
MANTEREI, POR TODOS OS MEIOS AO MEU ALCANCE, A HONRA E AS NOBRES TRADIÇÕES DA PROFISSÃO MÉDICA”.
por Maria Catarina Sanches Torga | Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
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