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Sábado, Dezembro 21, 2024

Considerações e propostas para área da saúde

Teresa Gago
Teresa Gago
Médica dentista; desempenhou diversos cargos autárquicos, incluindo o de vereação em Cascais entre 2013-2017. Dirigente Associativa do Movimento Não Apaguem a Memória e membro da Plataforma Cascais-movimento cívico. Militante do PS.

O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) poderá constituir-se como um instrumento de desenvolvimento e progresso social ou, pelo contrário, poderá limitar-se a ser uma ‘bazuca’ que, apesar de poder mitigar tragédias de curto-prazo, na verdade reforce  problemas pré-existentes. Dependerá da sua versão final e da respetiva aplicação.

Desde a apresentação da visão estratégica 20-30 realizada por Costa e Silva que existiram críticas quanto à manutenção do modelo de desenvolvimento (excessivamente) centrado no domínio privado como ‘motor’ da denominada economia de mercado. De facto, desde esse momento, parece ter-se (re)afirmado a clivagem entre o modelo de desenvolvimento preconizado pela esquerda pressupondo o reforço dos serviços públicos e o modelo ‘empresarialista’ defendido pela direita o qual exorta a importância do sector privado, enquanto reivindica capitais públicos ao abrigo de um velho “novo” liberalismo avesso ao risco.





Apesar do Ministro do Planeamento, Nelson de Souza, ter considerado que “de uma forma ou outra, os partidos da Direita criticaram uma alegada alocação excessiva de fundos ao Estado”, impõe-se perguntar se este denominado “investimento público” representará o efetivo desenvolvimento do sector público como resposta sócio-económica organizada pelo Estado ou se servirá sobretudo para fomentar uma ação serventuária de fazer “poupar” os denominados “custos de contexto” ao sector empresarial. Neste domínio não é tranquilizador o aparente afago de esquerda no encerramento do discurso do Ministro do Planeamento:

Finalmente, a obsessão ideológica da Direita contra o papel do Estado impede-a de perceber que o setor privado não está, na atual conjuntura, nas melhores circunstâncias para investir e que só o Estado pode desempenhar essa função de imediato na economia em escala mais alargada. É percebendo esta evidência, que quase todos os analistas, economistas e financeiros, além das principais organizações internacionais, desde o BCE até ao FMI, passando pela OCDE, recomendam a adoção de potentes programas de estímulo económico, usando como alavanca o investimento público.”

O “novo” modelo de desenvolvimento que se procura empreender, em linha com o enquadramento europeu, aproxima-se daquele descrito por Mazzucato no seu livro “Estado empreendedor”. Para a autora o Estado deve assumir a função de catalisador de novos investimentos de modo a modificar e criar “mercados”, por via de parcerias público-privado – academia, de modo a fomentar a inovação. Desafortunadamente um dos exemplos de sucesso apontados neste tipo de parcerias é o da tecnologia dos medicamentos que, como vemos com as vacinas, tem motivado comportamentos ‘mercantis’ não éticos por parte da big pharma perante a impotência da União Europeia quando comparada com países como os Estados Unidos da América e Israel. Será que as multinacionais mudarão de comportamento? Será que as patentes poderão ser públicas? E os produtos de investigação colocados ao serviço de todos?

Pese embora as previsíveis tribulações deste proposto “novo” modelo de desenvolvimento e o ceticismo suscitado pela denominada visão estratégica 20-30, apresentam-se propostas que poderão contribuir para o vigor social e a coesão económica da sociedade assumindo o sector público como âncora primacial.

Partamos, pois, da própria discussão pública da visão estratégica de Costa e Silva, que consta na adenda ao documento respetivo, para reafirmar a necessidade do PRR considerar em maior extensão e profundidade as medidas de reforço ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), nomeadamente:

  • A importância da revisão das carreiras dos profissionais de saúde e o lançamento de políticas de melhoria das condições de trabalho”;
  • O investimento em infraestruturas tecnológicas e tecnologias digitais, fixas e móveis, que permitam enfrentar os desafios da transformação digital, nos domínios da gestão integrada, mas também da prestação de cuidados”;
  • O investimento em “programas de monitorização e avaliação das políticas de saúde, a construção de bases de dados e de indicadores, para apoio à decisão e à avaliação dos custos e resultados, a utilização de inteligência artificial e ciência de dados no tratamento da informação gerada nos atos de gestão e de prestação de cuidados. No mesmo sentido, ganhos de eficiência na utilização dos recursos e ganhos de qualidade na prestação de cuidados (…) e a melhoria da articulação entre as diferentes unidades do SNS.”

 

  1. Profissionais de saúde e melhoria das condições de trabalho

A Lei de Bases da Saúde (Lei 95/2019) prevê que o SNS tenha uma “força de trabalho planeada e organizada de modo a satisfazer as necessidades assistenciais da população, em termos de disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade, evoluindo progressivamente para a criação de mecanismos de dedicação plena ao exercício de funções públicas, estruturadas em carreiras…” (Base 22, n.5). É com base neste princípio estruturante que o PRR deverá contribuir através da componente 6. Qualificação e competências (agenda de promoção do trabalho digno e Incentivo adultos) e da componente 2. Habitação (necessidades temporárias de fixação de funcionários) para:

  • Dotar os estabelecimentos de saúde do SNS com o quadro de profissionais necessários à satisfação das necessidades de saúde da população, com recurso ao trabalho em funções públicas, em detrimento dos contratos individuais de trabalho e prestação de serviços (recibos-verdes).
  • (Re)instituir os mecanismos de progressão na carreira especial dos profissionais de saúde e permitir a criação de carreiras especiais para os grupos de profissionais de saúde que ainda não tenham esse enquadramento, de modo a que a dedicação plena ao SNS se torne uma opção de vida satisfatória.
  • Estimular as entidades privadas de saúde a adotarem mecanismos de negociação coletiva com os profissionais de saúde, nomeadamente aquelas com as quais o SNS estabelece convenção ou protocolo de colaboração.
  • Assegurar que as entidades do SNS com vocação formativa têm meios para prover formação pré e pós-graduada acautelando que todas as especialidades médicas e de enfermagem tenham possibilidade de formação pré e pós graduada em unidades do SNS.
  • Reforçar o número de profissionais afetos à função de secretariado clínico de modo a libertar os profissionais de saúde do excesso de exigências administrativas.
  • Contemplar os profissionais de saúde na medida da componente habitação para suprir “necessidades temporárias de fixação de funcionários, agentes e demais servidores do Estado e dos institutos públicos”, para que possa haver apoio às condições de trabalho em regiões onde seja necessário incentivar a fixação de profissionais de saúde.

O Estado deve constituir-se como entidade patronal exemplar não devendo contribuir para a ‘justificação’ de situações de precariedade. A agenda de promoção para o trabalho digno deverá constituir-se como uma ampla plataforma de dignificação do trabalho e não como mero apoio à contratação num contexto de desregulação da legislação laboral. Acresce que existe a necessidade de valorização do trabalho em funções públicas, enquanto grupo de profissionais servidores do Estado, que asseguram a continuidade das atividades essenciais à vida coletiva. Nesta matéria importa lembrar as recentes palavras de Costa e Silva ‘a salvação “não são os mercados, é o Estado, o SNS” ’, ao que acrescem todos os outros profissionais afetos às diversas funções públicas.

 

  1. Investimento em infraestruturas tecnológicas, nos domínios da gestão integrada e Investimento em programas de monitorização e avaliação das políticas de saúde

A Lei de Bases da Saúde prevê na base sobre tecnologias de informação e comunicação (base 16) que o Estado deve promover a utilização eficiente das tecnologias de informação e comunicação como instrumento para a prestação de cuidados de forma a melhorar o acesso aos serviços de saúde e a maximizar as condições de trabalho dos profissionais e a eficiência das organizações. Alicerçado na LBS e ao abrigo da transição digital na saúde existe a oportunidade de resolver o problema da existência de diversos sistemas, microssistemas e subsistemas de informação de saúde, na sua maioria não integrados, que dificultam a ação dos profissionais de saúde gerando perdas de tempo, de eficácia, de efetividade e de resolutividade, constituindo-se como predisponentes da fragmentação dos cuidados.

  • Harmonizar os sistemas de informação existentes nas unidades do SNS de forma a assegurar a integração e a interoperabilidade dos sistemas de gestão clínica dos utentes durante todo o seu percurso de saúde no SNS.
  • Garantir que no sistema de informação à gestão clínica do SNS, nomeadamente na área das análises clínicas, existe a possibilidade (e obrigatoriedade) das entidades convencionadas inserirem os dados clínicos solicitados ao abrigo da convenção.
  • Criar e desenvolver um sistema de informação dedicado à saúde pública provido de capacidade de georreferenciação, duplamente orientado para identificação e ação em caso de doença infeciosa, bem como para monitorização de resultados em saúde, que permita a recolha automática de dados de diversos subsistemas de informação em saúde e de sistemas de avaliação sócio-demográfica e possibilite a análise e síntese de resultados, numa ótica de trabalho colaborativo e em rede.
  • Criar um registo de doentes crónicos associado ao Observatório Nacional de Saúde, articulável com o sistema único de informação de saúde pública.

 

  1. Reorganização funcional e orgânica da função pública associada ao SNS

A Componente 19 do PRR refere-se à Administração Pública e prevê a implementação de uma reforma para a sua reorganização funcional e orgânica, na qual é proposto o reforço dos serviços com funções estratégicas, de estudo, de planeamento e de avaliação. No que ao SNS se refere esta medida poderá contribuir para:

  • Constituir um gabinete permanente dedicado ao planeamento plurianual, conceção/avaliação e estatísticas bem como de acompanhamento das instalações e dos equipamentos de saúde, de apoio ao responsável pela tutela da saúde, que concentre os profissionais de engenharia e de arquitetura dedicados às estruturas de saúde que se encontram dispersos pelos diversos níveis da administração pública.
  • Perspetivar os meios necessários ao incremento de Serviços Locais de Saúde que constituam a base de uma organização articulada e em rede para um SNS mais próximo das necessidades populacionais.

 

Comentários finais

Na reforma dos cuidados de saúde primários encontra-se prevista a descentralização de competências para as autarquias, designadamente nas respostas de proximidade como a domiciliação; a desinstitucionalização e a ambulatorização. Sendo certo que é necessário envolver as autarquias nos processos de saúde é importante fazê-lo de uma forma articulada e colaborativa garantindo que o SNS não se transforma numa entidade a 308 velocidades, dependente de orçamentos e interesses municipais e de “outsourcings” (in)convenientes. A municipalização da saúde é o contrário da cooperação e da participação. Representa a pulverização do SNS e dos seus profissionais como (já) se verifica no caso dos assistentes operacionais.

A pandemia de SARS-CoV2 veio (re)demonstrar a importância do SNS.

A pandemia também revelou as suas insuficiências e dificuldades.

Sabendo que é necessária inegável vontade e determinação política para introduzir as modificações que todos os defensores do SNS sabem ser necessárias e em torno das quais se uniram para a aprovação da LBS – Esperemos que o PS esteja à altura do desafio.


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90


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