As constituições restringem o poder dos governos ao definir em termos precisos quem tem quais direitos, quais direitos formam a base das decisões jurídicas e como o poder político é disperso entre as instituições.
por Brendan Szendro, em The Conversation | Tradução de Cezar Xavier
Novos combates estouraram novamente entre Israel e o grupo palestino Hamas, colocando em risco um cessar-fogo instituído após uma guerra de 11 dias em maio.
O conflito em Gaza é um teste inicial do novo governo de coalizão de Israel. Recentemente, partidos de todo o espectro político se uniram para remover o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, do poder, encerrando uma crise política de dois anos – embora ele possa manobrar para voltar ao poder.
Enquanto conduzia uma pesquisa de dissertação sobre a relação entre religião e estado em Israel, rastreei a instabilidade crônica de Israel até o que acredito ser seu cerne: ao contrário da maioria dos países, Israel não tem uma constituição.
Por que as constituições são importantes
As constituições restringem o poder dos governos ao definir em termos precisos quem tem quais direitos, quais direitos formam a base das decisões jurídicas e como o poder político é disperso entre as instituições.
Israel é governado por um corpo mutável e sempre crescente das chamadas “leis básicas” – “Chukei Ha-Yesod” em hebraico. As leis básicas foram aprovadas individualmente nos últimos 73 anos, começando com uma lei de duas páginas que descreveu a composição da legislatura de Israel, o Knesset e os direitos de voto dos cidadãos.
Hoje, Israel é governado por uma coleção de 13 leis de 124 páginas. Embora as leis básicas delinhem uma visão dos direitos democráticos, elas permanecem, para parafrasear a falecida acadêmica de direito Ruth Gavison, “não ancoradas”.
Isso permite que Israel mantenha uma postura ambígua em questões fundamentais para a identidade de uma nação.
Primeiro, Israel nunca definiu oficialmente a relação entre religião e estado. Israel é baseado na religião judaica? Ou é um estado secular que abriga judeus, com minorias não judias? Essa pergunta permanece sem resposta.
O país também não determinou totalmente se os israelenses árabes e outros cidadãos não judeus – que constituem cerca de um quarto de seus 9 milhões de habitantes – desfrutam dos mesmos direitos que seus colegas judeus.
Israel também gagueja sobre o poder relativo da legislatura e do judiciário.
A Suprema Corte israelense usou essa ambigüidade constitucional para submeter retroativamente a nova legislação à revisão judicial. Enquanto isso, os legisladores do Knesset tentaram enfraquecer a autoridade do tribunal sobre sua legislação. O partido Yamina do primeiro-ministro Naftali Bennett, por exemplo, já havia tentado aprovar uma legislação que permitia ao Knesset anular as decisões judiciais.
Mesmo as fronteiras oficiais de Israel não estão definidas. Israel mantém sua soberania sobre o território da Cisjordânia, mas oficialmente a Cisjordânia não faz parte de Israel. Portanto, os palestinos que vivem na Cisjordânia não têm direitos sob a lei israelense, porque não são cidadãos israelenses.
Os palestinos vivem sob o regime militar israelense, sujeitos à lei militar que não é restringida por quaisquer limites constitucionais, ao lado de colonos israelenses que estão sujeitos à lei israelense.
Essa ambigüidade levou Yuli Tamir, um político e acadêmico israelense, a zombar: “Israel é mesmo um país de verdade?”
Uma jovem democracia
Israel não é a única democracia parlamentar sem uma constituição formal. O Reino Unido também não tem.
Mas o Reino Unido tem um grande corpo de leis acumulado ao longo de séculos de conflito político. Essa tradição bem estabelecida de direito consuetudinário, que serviu como uma das fontes para a própria Constituição dos Estados Unidos, é a base legal da governança no Reino Unido
Israel, fundado em 1948, não tem essa história para se apoiar. E muitos de seus problemas são comuns a democracias relativamente jovens. Sistemas partidários fracos e fragmentados e a competição entre grupos étnicos e religiosos são marcas do processo de democratização. Os primeiros Estados Unidos, por exemplo, também enfrentaram muitos desses problemas.
Mas o estado de direito geralmente prevalece nos Estados Unidos, e a democracia progride, porque tanto os tribunais quanto os legisladores se submetem a um documento central: a Constituição dos Estados Unidos.
A Constituição descreve os poderes de cada ramo do governo, bem como os procedimentos para emendas. A Declaração de Direitos dos EUA – as primeiras 10 emendas – garante direitos específicos dos cidadãos.
Logrolling
O governo de Netanyahu tentou resolver alguns desacordos de longa data sobre a identidade de Israel durante seu mandato mais recente – embora não necessariamente com o objetivo de fortalecer a democracia liberal.
Em 2018, o Knesset aprovou uma lei básica nomeando Israel como o “estado-nação do povo judeu”. Esse esforço para resolver uma questão central de identidade não agradou a quase ninguém. Os israelenses árabes e de esquerda se opuseram ao rebaixamento tácito dos árabes ao status de segunda classe, enquanto grupos religiosos judeus consideraram a lei secular demais.
Jogadas políticas divisivas como essa se tornaram comuns nos estágios finais do governo de Netanyahu. À medida que a política da coalizão se tornava cada vez mais frágil, Netanyahu mergulhou no que os cientistas políticos chamam de “logrolling”: usar trade-offs de políticas entre os partidos em troca de apoio político.
Esse foi especialmente o caso em relação à religião, já que Netanyahu trocou políticas que apaziguavam os grupos judeus ortodoxos que o mantinham no poder. Em 2018, por exemplo, a coalizão de Netanyahu aprovou uma nova legislação impondo leis anteriormente simbólicas, como restrições a negócios que operam no sábado. Foi um movimento punitivo para cidades como Tel Aviv, com grandes populações seculares.
Da mesma forma, a política de Netanyahu de encorajar os colonos judeus a se mudarem para a Cisjordânia e outros territórios palestinos ocupados e construir cidades foi mais uma estratégia política do que fervor religioso. Seu apoio agressivo ao nacionalismo judaico alienou cada vez mais a população árabe de Israel, que tem poucos caminhos legais para contestar seu tratamento.
Minorias são maltratadas e até mesmo subjugadas em países que também têm constituições. Mas as constituições lhes dão vias legais para desafiar essa discriminação.
A era Netanyahu mostrou que políticos estratégicos podem explorar o vácuo constitucional de Israel para manter o poder muito além de seu mandato popular. Essas questões desestabilizadoras continuarão a apodrecer à medida que um novo governo assumir as rédeas de Israel.
por Brendan Szendro, Candidato a PhD na Universidade Binghamton, State University of New York | Texto original em português do Brasil, com tradução de Cezar Xavier
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