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Sexta-feira, Fevereiro 7, 2025

Consultores

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

No passado mês de Janeiro Mário Centeno, governador do Banco de Portugal (BdP), foi à Assembleia da República, à boleia do chamado caso “Rosalino” esclarecer alguns aspectos do regime aplicável aos consultores, e em geral a todo o pessoal do Banco.

A partir da boa cobertura das declarações pelo Diário de Notícias: “Mário Centeno: Banco de Portugal tem seis consultores e estão quase todos na reforma”, permitir-me-ei destacar alguns aspectos e referir outras situações que existiram ou ainda existem no sector público.

Em primeiro lugar, ó estilo muito assertivo de Mário Centeno, que não hesita em dizer o que pensa: a Comissão de Vencimentos do BdP apenas se pronuncia sobre os vencimentos dos administradores, não sobre os dos consultores, as remunerações do pessoal e a própria idade de reforma são determinados pelos Instrumentos de Regulamentação Colectiva de Trabalho. Mais explica que reagiu publicamente ao anúncio por uma fonte de que no caso da prevista nomeação de Rosalino como “Secretário-Geral do Governo”, o Banco financiaria uma parte da remuneração, sem especificar a fonte porque isso seria um financiamento proibido, de acordo com os Tratados. É claro que seria suficiente informar o Governo por ofício, ou recordar a lei através de um simples telefonema, que nem necessitaria de ser feito pelo próprio. Em rigor bastaria que o próprio Rosalino, que diz ser da sua opinião, pegasse ele próprio no telefone …

Talvez “picado” Joaquim Miranda Sarmento lá se foi dando a esforços para constituir a Comissão de Vencimentos do BdP, o que implicou fazer novas nomeações para o Conselho Consultivo, o Governo redescobriu a multiplicidade de regimes remuneratórios que se aplicam aos próprios gestores públicos (que o caso TAP / Alexandra Reis já tinha permitido revisitar) e deixou supor que se equacionava a sua revisão / melhoria, e um ex-Ministro e ex-deputado europeu aceitou preencher o lugar destinado ao supervenientemente indisponível Rosalino “pagando para trabalhar” (Montenegro dixit), (mau) exemplo que o indigitado não quis dar, e o extermínio das Secretarias-Gerais e dos Secretários-Gerais continuou. Há dias foi o da Administração Interna.

Apesar de entretanto Mário Centeno ter afastado publicamente a possibilidade de se candidatar a Presidente da República, a direita política não desarma. Temem o que ele possa dizer como Governador do Banco de Portugal. E gostariam de recompensar mais um dos seus, talvez Álvaro Santos Pereira, ligado à gesta de Passos Coelho, mas que não tem o perfil técnico nem a estatura de Centeno. Já Carlos Costa hostilizara este quando, simples quadro do Banco, o preterira na indicação de economista-chefe.

Pessoalmente, nunca considerei a hipótese de Centeno vir a ser Presidente da República. Mas é sintomático que tenha a capacidade de despertar invejas entre os medíocres.

O segundo aspecto que retive das declarações de Centeno tem a ver com os consultores, ou melhor com os consultores da administração do Banco de Portugal. Aparentemente são enquadrados como consultores da administração do BdP quadros do próprio Banco já em fim de carreira (a reforma no caso dos bancários, é concedida aos 62 anos, ficámos a saber) que nele já exerceram funções como administradores ou que, tendo exercido cargos elevados fora, ficam, após o regresso, com um estatuto especial. Não há carreira de consultores, não há tabela de vencimentos, não há concursos para consultores raconsultores.

Cada Governador “cria” novos consultores a adicionar aos que já existem, define caso a caso o estatuto do consultor e o que se lhe pede. Pretende-se, Centeno é muito claro nesse ponto, evitar que um bom quadro se perca para o Banco(i). O consultor é assim um técnico que tendo tido funções de linha nos serviços passa, quando chega a um certo estádio, a ter o estatuto de “arca da sabedoria”.

Não queria ironizar excessivamente nem efectuar grandes análises sobre o que, bem vistas as coisas, continuou a ser desconhecido até porque o problema de manter integrados e produtivos os quadros de uma organização que já esgotaram, pelo menos internamente, as suas perspectivas de carreira, é quase universal. No entanto arrisco dizer pode não fazer muito sentido que um ex-administrador, como foi o caso de Rosalino, que passa a consultor, mantenha praticamente a sua remuneração apesar da diminuição de responsabilidades.

O Estado também teve este problema, a uma escala muito maior, e resolveu-o mal, para não dizer que o agravou.

Por um lado a carreira técnica superior, na qual se progredia por via de regra, por concurso, e que começou por terminar em assessor – para a qual o concurso exigia a apresentação e discussão de um trabalho, depois, não sei por que razão, tornada facultativa – teve de ser enriquecida com uma nova categoria de assessor principal.

Por outro, para que os dirigentes não disputassem, nos concursos abertos nos seus organismos, os lugares de carreira disponíveis, criou-se a possibilidade de requererem lugares acima da sua categoria, a extinguir quando vagassem(ii).

Ao fim de mais alguns anos já havia tantos assessores principais que algumas Direcções-Gerais tinham, não gabinetes, mas “salas de assessores principais” que estes, informalmente dispensados de picar o ponto, visitavam quando compareciam ao serviço. Noutros casos ficavam na dependência directa de directores-gerais ou subdirectores-gerais que não sabiam o que lhes pedir.

No ciclo de José Sócrates mais uma “reforma” suprimiu as categorias da carreira técnica superior, e assessores e assessores principais passaram a ser todos “técnicos superiores” apenas diferenciados pela remuneração resultante da acumulação de avaliações de desempenho perturbada aliás por congelamentos. Deixou de haver hierarquia de categorias, colegas mais experientes que poderiam enquadrar tecnicamente os mais recentes, instalou-se a anomia. A chefia passou a ser assegurada por dirigentes intermédios.

Concluo com um aspecto de que só tomei consciência pelas declarações de Centeno: a circunstância de o Banco de Portugal acolher com bons olhos a saída temporária de elementos do seu quadro para o exercício de funções de responsabilidade noutras organizações, procurando, como já referi, que no seu regresso não fossem prejudicados.

Três outros organismos cumpriram, em diversas épocas, a missão de fornecer quadros, especialmente dirigentes, para outros organismos da Administração Pública.

A situação mais antiga terá sido a da Direcção-Geral da Contabilidade Pública a quem o Decreto-Lei nº 32 886, de 30 de Junho de 1943 (Introduz alterações no serviço e no quadro de pessoal da Direcção Geral da Contabilidade Pública e da Intendência-Geral do Orçamento) criou no Artigo 12º uma sujeição prestigiosa:

Os lugares dos quadros especiais de administração e contabilidade de organismos ou estabelecimentos do Estado, gozando ou não de autonomia administrativa, poderão de futuro ser preenchidos por funcionários destacados da Direcção-Geral da Contabilidade Pública desde que o Ministro do qual aqueles estabelecimentos dependam o solicite e mediante despacho do Ministro das Finanças;…

& 1 Os funcionários destacados nos termos do corpo deste artigo dão lugar a vacatura, que será preenchida nos termos legais, mas mantêm todos os direitos como se estivessem no quadro da contabilidade pública.

& 2 …

Os Relatórios Anuais da Direcção-Geral publicados por Aureliano Felismino com carácter nominativo mostram uma persistente hemorragia de pessoal: a Direcção-Geral forma, em cursos internos, pessoal que vai exercer funções noutros lugares e muitos destes quadros continuam a acompanhar as discussões internas. Com a circunstância de muitos dos novos organismos oferecerem melhores condições que os tradicionais a deterioração agrava-se mas Felismino faz ponto de honra em deixar sair os seus funcionários para melhor.

Uma outra situação a destacar é a formação em 1969 dos Gabinetes de Planeamento, mais tarde Departamentos Sectoriais de Planeamento, com recurso a técnicos do Secretariado Técnico da Presidência do Conselho, mais tarde Departamento Central de Planeamento. O principal instrumento é o Decreto-Lei nº 49 194, de 19 de Agosto de 1964 (Cria gabinetes de planeamento nos departamentos governamentais com responsabilidade na preparação e execução dos planos de fomento, destinados a assegurar e coordenar o exercício de funções nos restectivos sectores e a estabelecer as convenientes ligações com os órgãos centrais e interministeriais de planeamento):

Em causa designadamente as seguintes disposições:

Art. 4.º – 1. Cada gabinete de planeamento compreenderá um quadro de pessoal técnico, a fixar no respectivo diploma constitutivo, e um representante do Secretariado Técnico da Presidência do Conselho.

Art. 5.º – 1. Mediante despacho ministerial, de harmonia com as necessidades, poderá ser temporàriamente destacado para os gabinetes de planeamento pessoal de quaisquer outros serviços dos respectivos departamentos.

  1. O pessoal destacado nos termos do número anterior poderá ser dispensado, total ou parcialmente, do desempenho de funções nos serviços onde se encontre colocado, consoante as actividades a exercer nos gabinetes.

Art. 8.º Compete ao representante do Secretariado Técnico da Presidência do Conselho junto da cada gabinete de planeamento assegurar a conveniente coordenação das respectivas actividades com o planeamento global e prestar apoio técnico ao gabinete quanto a métodos de planeamento.

 Com a saída, por altura do 25 de Abril de diversos funcionários do Secretariado Técnico para cargos políticos ou de chefia nos Ministérios Sectoriais a capacidade do Secretariado ficou fortemente comprometida.

Uma terceira situação viria a ser mais tarde a da Inspecção-Geral de Finanças, cujos inspectores muito bem preparados do ponto de vista legal e económico-financeiro, vieram a ser chamados para preencher muitos lugares dirigentes de topo.

E não poderemos encerrar a questão dos consultores do Banco de Portugal sem falar dos consultores criados no Ministério da Justiça por António Costa, presumo que com o aconselhamento de João Bilhim, que permitia inclusive a acumulação de funções com a docência universitária em tempo integral. Diploma nesta parte ilegal por falta de assinatura do Ministro competente em razão da matéria, ou seja o Ministro com a tutela do ensino superior.

A criação de lugares de consultor na Secretaria-Geral do Governo, que julgo irá dar continuidade à criação do CEJUR e de outros centros de competências esboçados sob António Costa bem poderia ser uma consequência da reestruturação anunciada – cujo objectivo se tem dito, estupidamente, ser o de poupar através da extinção de lugares de chefia.

E de facto Rosalino teria capacidade para esse trabalho, aliás elogiei-o no meu primeiro artigo publicado no Jornal Tornado em 29 de Janeiro de 2018, Haverá lugar para os «Think Tanks» na política portuguesa?. Mas enfim, vai dirigir a fabricação de notas de euro em empresa criada pelo Banco de Portugal, depois de ter mandado passear os que indignamente usaram o seu nome.

 

Notas

(i) Em algumas situações foram outros bancos a criar lugares de consultor. Vítor Constâncio e Teodora Cardoso, esta em tempo um quadro do Banco de Banco de Portugal foram contratados pelo BPI como consultores.

(ii) Repare-se que o aparente facilitismo implícito não era necessariamente bem aceite pelos funcionários; quando concorri a assessor na Direcção-Geral do Património do Estado todos os candidatos apresentaram trabalho; quando abriu concurso para assessor principal os candidatos, todos dirigentes que tinham também requerido a criação administrativa do lugar, insistiram em serem promovidos por concurso, tendo sido este extinto por inutilidade superveniente.

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