A lebre Lili é uma fêmea muito vaidosa e tem grandes cuidados com o pelo amarelado e a beleza do focinho.
Aprendeu a reconhecer a presença de caçadores, e os cães que os acompanham, não lhe metem graça.
Mede o seu meio metro e pesa três quilinhos. A vaidade vem-lhe de ser dona de grandes orelhas, de cor preta nas pontas,que enquadram o elegante focinho e tem audição de chefe de orquestra. Confia no grande comprimento dos membros posteriores, que lhe permitem atingir velocidades de 60 km por hora. É que se pode dizer de “oh! pernas para que vos quero”!
Nada bem nas lagoas e rios e é capaz de subir escarpas sem problemas. Uma visão excelente. Melhor olfato. Tudo isto lhe permite escapar aos seus perseguidores com alegria e faceirice. Quando se alimenta ninguém dá por ela, pois coloca as orelhas para baixo, como que fechadas e fica agachada no solo.
Tem um grupo com várias amigas_ mas a Gigi é aquela com que faz mais traquinices e é-lhe muito afeiçoada. Aproximam-se muitas vezes, sorrateiras, da aldeia de A-dos-Frades, para comerem erva nos campos semeados.
Quando o tempo começa a refrescar e a chuva a cair com mais frequência, a Lili e a Gigi redobram os cuidados. Sabem que há, por essa altura, um tempo de perigo em que os humanos as tentam caçar. Já tiveram várias amigas da mesma tribo que levaram um triste fim dentro das sacolas dos caçadores. E têm medo aos cães que parecem adivinhar onde elas se refugiam.
Casa da D. Laurinda
Mas quando o frio estala mais forte nos campos e nos bosques, as árvores já estão despidas de folhagem, os caçadores desistem e vão-se embora. Nesta altura do ano há muitos jardins de casas iluminados com as cores do arco íris. As duas amigas não sabem o que isso significa, mas sabem que é uma altura do ano em que se sentem livres e felizes.
Um noite decidem aproximar-se do pátio de uma quinta, lugar onde costumam encontrar molhos de erva fresca. Sentem, pelo cheiro e pelo ruído que estão lá humanos, sinal de perigo. Mas ouvem também um glú-glú estranho que não conseguem identificar. Colam-se ao muro, orelhas baixas, para poderem espreitar.
Amedrontadas veem um peru seu conhecido, o Fanhoso, que costuma brincar fora da capoeira com o galo Catita.
Parece-lhes que o amigo de monco ao lado está a ser apertado entre as pernas de uma trabalhadora da quinta. Ela está a tentar meter-lhe uma água pela goela abaixo.
O Fanhoso não parece estar nada a apreciar a dose,pois bate as grandes e fortes asas e tenta desesperadamente escapulir-se. Pobre animal, toda a dignidade da ampla cauda em leque, perdida!
Assustado, só pensa em fugir.
As duas lebres amigas olham-se nos olhos e correm disparadas sobre a mulher, de modo a causar o maior sobressalto possível, e esta apanha tal susto que larga o peru. Estava a embebedá-lo para depois lhe cortar o pescoço. Arrancadas as penas, teria o Fanhoso como destino, ir a assar no forno.
Um glú-glú esganiçado de alegria sai da garganta do ameaçado animal que rodopia no chão a grande velocidade, tentando libertar as patas, apertadas por um nó feito de vime. Consegue o seu objetivo, enquanto as lebres Lili e Gigi lançam o maior dos desatinos no pátio para cortarem os movimentos da mulher, agora toda zangada.
O Fanhoso não perde tempo,o nó que o aperta soltou-se,e ele lança-se em voo planado, pela cancela aberta, sobre os campos onde brilha a erva coberta de geada.
Na pista do peru seguem as duas lebres, que mais velozes, o ultrapassam.
_Anda cá malvado, volta aqui para o meu colo para eu te aquecer o papo com esta aguardente quentinha _ grita a trabalhadora que já não sabe para que lado se virar, perdido o peru, entornada a garrafa, partida a grande gamela onde iria decorrer a degola da ave.
Os gritos são ouvidos de dentro da casa. Logo surge mais família no pátio.
_Que se passa aqui, Laurinda? Já não posso comer a sopa sossegado? -grita o marido.
_Ai, Mãe, que ias matar o meu Fanhoso! Tu tinhas prometido não fazer essa crueldade _ clama o filho António, que carne nunca prova. É conhecido pelo Robin dos Bosques da bicharada. Não gosta de degolas, nem de aves da capoeira dentro da panela.
_ E comigo, ninguém se preocupa? -larga a chorar a dona Laurinda atormentada. Olhem as minhas pernas todas arranhadas. E quem te fez a sopa, marido mal agradecido?
O pátio acalmou. O senhor Jesuíno sentou-se num banquinho ao lado da mulher! O António chegou-se à mãe, contente por o peru ter escapado, mas triste com as penas dela que há meses andava a engordar o animal para a ceia de Natal.
D. Laurinda
O Sr. Jesuíno
E ainda ninguém sabia da intervenção das lebres!
Foi a mulher que esclareceu a história da intervenção das danadas.
_Atiraram-se a mim! Parecia que até adivinhavam o destino do Fanhoso e vieram salvá-lo!
_ Duas lebres, dizes tu? _perguntou o marido pasmado. Duas lebres entraram aqui pelo pátio adentro e atiraram-se sobre ti de tal modo que deixaste o peru fugir?
_Nunca tal ouvi _ murmurou o António, encantado com a esperteza dos animais de quem tanto gosta!
_Pois, é melhor nem contarmos nada aqui aos vizinhos! Ainda acabam a rir-se de nós. Vão dizer que agora nem sou capaz de atar, embebedar e degolar um peru!
_ Acha bem que não contes nada. Ainda iam dizer que o teu filho te converteu às suas dietas vegeganas!
_Não é vegeganas, Pai! É vegetarianas!
_Ora, ou isso, quem quer saber? Laurinda anda para dentro, vem comer a sopa que arrefece, e amanhã logo se limpa o pátio.
No dia seguinte a dona Laurinda acordou cedo, com o cantar do galo! E pensou:
_Ao menos sobras tu, meu cristas engalanado!
E lá se levantou para ir tomar o café e comer o pão torrado.
Feito isto, agarrou nas migalhas da mesa e dirigiu-se para a capoeira.
Grande surpresa a esperava. Pela porta aberta tinham saído todas as galinhas, agora nos campos espalhadas. E os únicos ocupantes eram o Fanhoso e o Cristas. O Fanhoso com a grande cauda emplumada, cioso da beleza das penas que tinha causado! Mas mesmo assim, regressado a casa! Dona Laurinda rendeu-se. Uma tão bela ave, não merecia acabar na panela do Natal!
Fanhoso, o peru
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90 | Ilustrações de de Beatriz Lamas Oliveira
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