J.P. ( n.1962) Psicólogo Clínico, Professor, autor de vários livros de inspiração junguiana. Em 2021, dá uma entrevista que vejo no youtube sobre o seu percurso, a sua vida. Adoeceu gravemente (terá sido a depressão a que os alquimistas chamam nigredo e Jung explica como sendo uma fase do meio da vida em que o eu se confronta com o inconsciente? Uma depressão que afunda, mas pode também, se o eu integrar as matérias (via sonhos arquetípicos) de raiz inconsciente, salvar e conduzir ao amadurecimento e integração de um EU superior.
J.P. tem um rosto magro, sofrido, olhos escuros que escurecem ainda mais quando se concentra para falar. Nada do que diz é fruto de acaso, cada afirmação é completada pelo seu possível contrário, revelando a complexidade de todo o pensamento e a finalidade, o sentido, a que conduz.
Numa das suas regras de vida para um casamento duradouro, salienta a importância das primeiras três, que vemos numa sessão do youtube, mas a escolha do três é intrigante. Porquê três e não quatro, ou só duas, ou uma? Quebrar um voto (para J.P. o casamento é um voto, e um voto é um compromisso para a vida) se foi sincero no momento em que foi pronunciado não deve ser quebrado, nem uma vez sequer. A repetição terá algo a ver com Pedro, que por três vezes renegou a Jesus? Porque sendo J.P. um católico que se assume e por essa razão muitas vezes foi ofendido, maltratado mesmo, como diz, numa sociedade em perda de valores, o três pode para ele ter um valor especialmente simbólico, de pecado e perdão.
Fala numa das sessões do momento terrível em que todos na sua casa adoeceram. E que sem o apoio da mulher e dos filhos, e dos muitos amigos que também tinha e outros que foi descobrindo, via net, não teria sobrevivido. Aludiu a esse período com um olhar ainda mais escuro, como se de maldição se tratasse. Não li ainda os livros que quero ler, mas estou certa de que para ele o Mal existe e a sua presença se pode fazer sentir quando menos se espera. Tudo lhe corria bem na vida, as aulas, o consultório, as sessões em que participava, e de repente tudo se virou ao contrário. Até um convite da Universidade de Cambridge lhe foi retirado, magoando-o profundamente. Para um Académico de prestígio, como ele era, ser desconvidado sem razão foi, como é óbvio, mais do que uma ofensa, uma pura maldade gratuita, que o fez sofrer muito.
Como diz às tantas, aprende-se com o bom e com o mau que a vida nos oferece. Crescemos, ficamos mais humildes, mais disponíveis também para as situações dos outros em sofrimento e que é dever de ofício ajudar, numa profissão como a dele. Mas, diz ao concluir a sessão, temos de saber que é perigoso o que se possa fazer ou dizer, temos também de saber defender-nos do mal que nos ataque. Da sua provação saiu mais reforçado, mas poderia ter “caído” de vez naquele negrume de alma. Muito ajudado por todos enfrentou esse mal, de que já Jung tinha falado.
Confrontou os seus demónios, integrou o que lhe era revelado (e até aí permanecera oculto) sobreviveu e aqui está ele de novo, a falar connosco, para nos ajudar também.
É tão estimulante a sua análise do Manifesto Comunista, de
– Engels, pondo a nú as falhas de raciocínio e as ilusões que pretendem criar – utopias – que se traduziram em revoluções de violência inenarrável a pretexto de uma governação que seria mais justa, igualitária, ainda que dependendo de um governo restrito e autoritário, de ditadura selvagem, como é estimulante a sua perplexidade confessada por ter fé e acreditar em Cristo, sem perceber bem porquê.
Poderíamos dizer que a Fé é um dom, não terá nunca explicação, mas ele quer ir mais longe e entender por que razão, ao contrário da tendência laicizante actual do mundo, ele se tornou católico convicto. O que há de diferente em Cristo, que chegou há dois mil anos, em relação a todos os outros deuses, tão mais antigos e cujos cultos ainda se praticam, no Islamismo, ou no Hinduísmo, por exemplo, com grande quantidade de devotos.
Deixo eu a minha interrogação, enquanto não vejo a dele: será porque Jesus é uma figura histórica e não uma figuração abstracta, tal como Sócrates foi e em certa medida ambos no comportamento e no pensamento se aproximam? Refiro-me à questão da Ética como valor supremo, que leva a que ambos aceitem a morte a que são condenados. Contudo Sócrates é considerado e permanece filósofo, e Jesus é sublimado em Cristo, filho de Deus. Peterson não gosta que lhe perguntem se acredita em Deus, prefere responder que se esforça por viver como se Deus existisse. Leva a questão para a Ética do comportamento em vez de assumir a devoção a um Deus que se fez homem, em Cristo, para tomar consciência de si mesmo (Jung, no ensaio sobre Job). A centelha divina que se calhar existe em cada ser humano – será ela uma aproximação ao que se pode conhecer de Deus? E como ficamos em relação ao mal, que também no homem se revela em paralelo ao bem, quem sabe se de modo mais intenso? É um mistério esta dupla existência na criatura que Deus terá moldado com o barro do Jardim do Éden. Voltando a Jung e ao seu texto, Resposta A Job, percebe-se que a experiência do mal foi o contributo indispensável para a consciência que Deus adquiriu de si mesmo. BEM e MAL, complexos na sua oposição, mas presentes na realidade da essência do humano e do divino.
Uma das palavras que mais oiço nas intervenções do Prof. Peterson é meaning, significado, sentido.
Sentido – como orientação que se dá à vida, às escolhas que se fazem, aos comportamentos que se seguem, ou à razão da procura que nos incentiva e leva para este ou aquele caminho.
Sentido é uma ordem que se impõe ao que seria o caos, se o sentido não fosse procurado (Hoelderlin) ou se não chegasse a existir.
Abro uma das suas aulas, e está a definir para os alunos o que é um arquétipo. Define como subestrutura da consciência, esfera em que se foram somando ao longo de séculos, de milénios, os mitos e símbolos arcaicos que fazem o conjunto do que somos, como corpo individual e colectivo, social. Tudo nasce do corpo, desde os primórdios da civilização e da evolução até chegar ao Sapiens de quem descendemos. Somos seres biológicos, e até a consciência e as suas infraestruturas têm de materializar-se, por assim dizer, para serem reconhecidas e estudadas como são hoje em dia.
O sentido, de que se fala em Hoelderlin, a orientação e a ordem que é incutida ao sinal que o perdeu – somos um sinal que perdeu o sentido – só pode ser recuperado por via da integração dos arquétipos e sua dimensão mítica e simbólica, acumulação que se foi dando desde os primórdios da nossa existência como criaturas pensantes e capazes de socializar. Porque a primeira transmissão desses mitos, suas narrativas, foi oral, antes de ser remetida à escrita. Histórias contadas à noite, ao redor do fogo protector, do cozinhar da refeição. Histórias dentro de histórias, repetidas, contadas e cantadas, encantadas, sobrepondo-se umas às outras, até formarem o corpo de memória que se transforma em arquétipo, bem na base da nossa consciência primitiva.
Peterson recorre a Homero, recorre à Bíblia, ou aos antigos hinos da Suméria ou do Egipto, para aprofundar nesses textos a matéria primeira da nossa imaginação e da nossa capacidade de criar. Tudo enraíza nesse magma que é o inconsciente como subestrutura, antes de ser integrado na forma superior de um Eu que se foi sublimando ao entender o que se é. Na Kabbalah Deus diz, a dado momento: eu sou aquele que é.
Pergunta-se: o que é ser o que se é? O que é ser? O somatório de tudo o que foi e é desde o início dos tempos? Um Verbo que se fez carne para redimir o universo criado? (Apocalipse de São João: Ao princípio era o Verbo e o Verbo se fez carne e habitou entre nós), abrangendo por isso toda a matéria existente, humana e não só? (Deus ordena a Noé que leve para o seu barco também os animais, aos pares…).
Muita interrogação que nos é deixada.
Partindo do princípio que em todos nós, seres humanos, matéria criada por Deus, existe uma parcela, uma centelha da sua divindade, como devemos entender a afirmação de ser aquilo que é ?
Só poderemos ser algo de próximo àquilo que é se houver algum sentido para a nossa existência. E assim estamos de volta à primeira observação de Peterson na sua aula, com a importância que dá à definição de sentido (meaning). E o que é esse sentido, que em inglês também poderíamos talvez definir como purpose ( um objectivo, uma finalidade), uma vida com sentido, uma existência com sentido, uma vida realizada no âmbito pessoal, familiar, profissional, social, político (que é social) ou outro.
Mas não são equivalentes, se formos ver com mais atenção. Quando Hoelderlin escreve “somos um sinal que perdeu o sentido”, esta vida, este sinal, pode muito bem ter alcançado o seu objectivo (ser Professor, ser Político, ou Escritor) e ter perdido o sentido. De quê? Daquilo que é, da divindade em nós, criaturas que somos de Deus que nos criou para materializar a sua própria consciência de existir.
Para se ter a consciência de ser (e do sentido de ser) é preciso ter a de existir? O Deus da Kabbalah, tão assertivo, necessitou do Jeová do Antigo Testamento, no Livro de Job, e do questionamento de Job, seu fiel devoto, para se conhecer a si mesmo enquanto divindade que é, e manifestando-se existe?
E o que é a existência, de que um Jean-
Sartre fez toda uma filosofia? Existir é o ser em manifestação materializada? E onde fica o sentido, do sinal que somos, no dizer do poeta? Só o sentido preenche a existência? Daí que se fale negativamente de uma existência (coloquialmente uma vida) sem sentido? E finalmente: a existência, manifestação do ser? (sein und dasein? ser e estar?)
O gato de Alice, que é o gato de Schroedinger, que ora está ora não está, deixa de ser o que é quando não está?
E continuando a ser, será para lá do espelho? É aí que estará? C.S.Lewis a jogar connosco às escondidas…