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Terça-feira, Dezembro 24, 2024

Eleições em França

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

O contrato social em questão

1. A onda eleitoral antiglobalização
Tanto o ‘Brexit’ como as eleições presidenciais americanas enviaram uma mensagem clara antiglobalização ao ‘establishment’ ocidental. A mensagem tem sido dada também por outros actos eleitorais europeus, embora não de uma maneira tão dramática. Na Áustria, um candidato de extrema-direita a presidente perdeu as eleições, e na Holanda o avanço da extrema-direita ficou abaixo do previsto nas sondagens, mas em ambos os casos, assistiu-se a uma inflexão nacionalista.

A 23 de abril, na primeira volta das eleições presidenciais francesas, os dois principais candidatos da direita e da esquerda antiglobalização obtiveram um pouco mais de 40% dos votos. A 7 de Maio, na segunda volta, a líder da extrema-direita Marine Le Pen vai enfrentar Emmanuel Macron.

Macron ficou em primeiro lugar na primeira volta, com 24% dos votos contra os 21,3% de Le Pen. Após a sua demissão do governo, Emmanuel Macron criou um movimento que chamou de ‘Em Marcha’. Macron é um ex-banqueiro, membro de elite francesa e um candidato de convicções firmemente europeístas, pró-mercado e pró-globalização. As sondagens apontam para a sua vitória por uma margem grande, 60 contra 40 pontos percentuais.

Na Alemanha, a Chanceler Merkel obteve uma significativa vitória nas eleições do Estado do Sarre, contradizendo as sondagens que apontavam para a sua derrota. Tal como nas eleições austríacas e holandesas, os resultados da extrema-direita em França foram inferiores aos apontados pelas previsões. O clima económico e social tem melhorado continuamente na Europa desde o ano passado, com menos desemprego, mais crescimento, menos angústia sobre os níveis da dívida pública e privada e agora também com uma diminuição da pressão dos fluxos migratórios (na maior parte da Europa, pelo menos).

As autoridades europeias estão agora mais confiantes de que vão superar a crise. Será essa autoconfiança justificada? Pode o ‘establishment’ europeu ignorar as repetidas chamadas de atenção para a necessidade de reforma?

Aqui estão as principais razões que me levam a pensar que elas devem reflectir melhor sobre a situação.

2. O consenso democrático
Numa sociedade democrática, cada transformação social e política que pretenda ser aceite, apoiada e sustentável no longo prazo, deve ser benéfica, ou seja, deve beneficiar a maior parte da sociedade, e a partilha dos seus benefícios deve ser considerada como aceitável à luz do contrato social vigente.

As elites ocidentais, frequentemente com a ajuda de uma construção ideológica – a ideologia económica – têm deturpado estas premissas simples.

Adam Smith – considerado o pai fundador da ciência económica – mostrou de forma extensa e detalhada, como ninguém antes dele o fez, como o progresso material da humanidade é uma consequência da ‘divisão do trabalho’.

Ele juntou também a sua voz ao então já bem estabelecido e influente grupo de partidários do comércio livre (principalmente franceses) que considerava a intervenção do Estado como um obstáculo ao naturalmente benéfico comércio livre (que necessariamente se traduzia em formas cada vez mais avançadas de ‘divisão do trabalho’).

Uma metáfora que era então comumente usada em círculos eclesiásticos, a ‘mão invisível’, foi usada por Adam Smith para ilustrar as virtudes do comércio livre. Essa metáfora – que ele usou apenas uma vez na sua principal obra, ’A riqueza das Nações’ – não é original nem foi usada para defender uma ideia original; a sua interpretação como contribuição decisiva para a fundação da ciência económica por Adam Smith é uma distorção da realidade.

Para além disso, há que considerar que, no final do século dezoito, quando ‘A Riqueza das Nações’ foi escrita (1776 foi a data da primeira publicação), aqueles que faziam campanha para a regulamentação e proteção de certas actividades industriais eram os capitães de indústria e não as classes trabalhadoras. Não havia na altura nenhum debate sobre a ‘sociedade do bem-estar’.

A ‘divisão do trabalho’ fundamentou a teoria das vantagens mútuas no comércio, teoria que David Ricardo aperfeiçoou mais tarde (1820) e que é a base da teoria económica internacional contemporânea.

É necessário aqui lembrar que no Reino Unido o voto masculino universal só foi estabelecido em 1928 (e escusado será dizer, não incluía as colónias), sendo estendido às mulheres em 1938. Argumentar politicamente com base numa ‘mão invisível’ supostamente fundamentada na ciência económica para exigir o fim de qualquer restrição contemporânea ao comércio, é pura manipulação política que não pode ser seriamente aceite.

3. A mudança da natureza do jogo político
Quem olhar para o mapa local dos resultados das eleições presidenciais americanas ficará impressionado com sua absoluta clivagem geográfica. De um lado, temos os centros urbanos com resultados democráticos esmagadores (em Washington DC ou em Detroit o candidato republicano não atinge mesmo 5% dos votos) e do outro lado a América rural onde encontramos quase o reverso da medalha.

Outros factores são também importantes como o das velhas indústrias (literalmente a ‘cintura da ferrugem’ em inglês) contra os centros de tecnologia, ou as zonas cosmopolitas em oposição às zonas provincianas. Exceptuando as minorias étnicas ou religiosas, os eleitores da classe trabalhadora ou de estrato rural ou popular são agora mais propensos a votar nos republicanos do que nos democratas, destruindo a antiga lógica política.

Estamos a ver também o mesmo fenómeno a desenvolver-se em França. A Frente Nacional tem muito pouco apoio nos centros urbanos cosmopolitas (em Paris, fica à volta de 4%) mas é o número um no mundo rural e da velha indústria na metade oriental do país. A esquerda anti-mundialista tem um perfil de voto semelhante – embora não tão desequilibrado geograficamente – tendo uma presença mais forte na metade ocidental do país.

A democracia é simultaneamente um exercício de ‘como demitir um mau governo’ (Karl Popper); um sistema de ‘pesos e contrapesos’; mas é também um de exercício de construção de consenso (Habermas). Aquilo a que assistimos no mundo ocidental é um processo de destruição de consensos e a abertura de linhas profundas de fractura que seguem os mais problemáticos vectores, os geográficos!

Independentemente de saber quem irá ganhar esta guerra, os responsáveis políticos deveriam estar preocupados com esta fractura, bem como com as suas consequências desastrosas para a coesão social, e pensar em formas de a superar. O apoio do ‘establishment’ ao mais puro símbolo do actor urbano, cosmopolita e rico (que encarna um dos lados desta fractura) com o simultâneo descartar dos partidos nacionais estabelecidos há longos anos – que também executam um papel de ‘coesão nacional’ – é no longo prazo uma receita para o desastre.

4. Um novo contrato social
Os líderes europeus não devem confundir uma vitória conjuntural com a superação dos desafios enfrentados pelo continente europeu. A Europa está cada vez mais a identificar-se com um projecto sectário, construído sobre uma leitura distorcida das ciências sociais, ‘uma visão ideológica de banqueiros’. Ou se reforma profundamente ou se corre o risco de colapso.

A ‘globalização selvagem’ denunciada pelos adversários do ‘establishment’ europeu é uma realidade, mesmo se essa realidade existe mais fora do que dentro das fronteiras europeias. Uma elite responsável e globalizada tem de dar uma resposta séria aos desafios do desenvolvimento global e do ambiente e tratar de forma mais séria o jihadismo e outras ameaças fanáticas. Esta é a única forma de evitar pressões migratórias insustentáveis e de enfrentar ameaças externas, enquanto se estimula o aparelho produtivo interno. Voltar as atenções para dentro, como os anti-globalistas propõem, inviabilizará uma postura política aberta e liberal.

Na frente interna, no entanto, as elites devem alterar a sua atitude arrogante para com o voto popular e as suas preocupações. Uma proposta construtiva para um novo contrato social onde todos podem encontrar resposta às suas preocupações razoáveis é o único caminho positivo a seguir.

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