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Segunda-feira, Novembro 4, 2024

Cores do preconceito

Christiane Brito, em São Paulo
Christiane Brito, em São Paulo
Jornalista, escritora e eterna militante pelos direitos humanos; criou a “Biografia do Idoso” contra o ageísmo.  É adepta do Hip-Hop (Rap) como legítima e uma das mais belas expressões culturais da resistência dos povos.

Falo do povo, de nós, essa multidão sem rosto e sem cor, sem selo de origem – apesar de todos poderem ser reconhecidos facilmente pela herança de berço que transportam, como o português castiço ou o das ruas –, muitas vezes sem emprego, renda ou teto, e sem país (refugiados); peixões que as campanhas eleitorais visam fisgar com todas as armas, não só varas de pescar.

Christiane de BritoOs radicais a que me refiro são os jornalistas e os candidatos, notadamente os que radicalizaram à esquerda ou direita (nesse período recente em que a história mundial tende ao conservadorismo e até fascismo) e querem recuperar o terreno perdido dos votos.

Até aqui não emiti juízo de valor, só constatei. E, antes de continuar, aviso que sou da esquerda e votarei na Luiza Erundina (PSOL) em São Paulo, estreando voto nesse partido.

Prossigo:

O primeiro campeão brasileiro do ouro nas Olimpíadas 2016 é mulher e negra: Rafaela Silva, judô.

Talvez alguns torçam o nariz porque ela recebeu auxílio do “Bolsa Atleta”, do governo petista. Talvez alguns comemorem mais justamente porque ela recebeu o auxílio do “Bolsa Atleta” do governo petista.

Um lado e outro, nesse caso, estarão sendo levados à discordância a partir de um mesmo fato, sem dúvida positivo: falo do Bolsa Atleta. Um programa que permitiu a revelação de atletas da periferia e consolidou a carreira de atletas dedicados exclusivamente ao esporte. Um programa que levou mais jovens negros ao protagonismo no esporte; não é mérito exclusivo de um partido político, mas de crianças e adolescentes guerreiros que aproveitaram a oportunidade que lhes foi dada.

Indo mais fundo nesse quadro.

Antes mesmo de as Olimpíadas 2016 começarem, as campanhas políticas eleitorais de 2016, que elegerão prefeitos e vereadores em todo o país, já estavam em andamento. Hoje parecem fortalecidas como nunca e, algumas, se apropriam do que estiver disponível para elevar as chances nas urnas. Prova de que os usurpadores não estão apenas no poder, mas pleiteando-o.

Por isso acho fundamental, nesse momento, “desmisturar” as duas coisas, Olimpíadas e manipulação política, se é possível.

O interino Michel Temer — é meu palpite — cairá, o que vai se confirmando, parece-me, quando um dos seus “leais” homens, Eliseu Padilha, confirma a delação de corrupção política contra ele.

O que ganhará o senhor ministro interino por entregar o “presidente” em uma bandeja?

Essa pergunta é que me moveu na produção desse artigo, que segue “pistas” nos moldes sherloquianos. Iniciei esta investigação, particularmente, na sexta-feira (05), por volta de 13 horas.

Nesse horário, dirigi-me ao ponto de táxi que frequento muito, na Vila Leopoldina, e o ponto estava mais cheio de carros do que de costume. Além disso, o motorista na dianteira da fila me pareceu desconhecido.

Inicialmente com os olhos pregados no celular, provavelmente lendo mensagens, não me deu atenção. Eu não costumo puxar conversa, apenas respondo e me envolvo quando o papo é bom.

Ou sou educada quando o papo é hostil (alguns são hostis, a frota de taxistas em São Paulo, capital, costuma reunir porta-vozes da política mais elitista e eles gostam de impor suas ideias).

Eu estava quieta, divagando em círculos nos meus próprios problemas, quando o homem deliberadamente chamou minha atenção. Um sorriso mais do que simpático me levou à adesão irrestrita à conversa.

O motorista, jovem, negro e bonito, condenou as mentiras que a televisão e o jornal divulgam. Não estranhei, gostei.

Mas fiquei bastante espantada quando eu fiz menção ao fato de a Dilma (Dilma Rousseff, presidente eleita do Brasil) não ter feito as mudanças devidas na comunicação e ele responder com mais do que mero assentimento: “Ela de fato errou, deixou a imprensa hegemônica livre”.

Desenho de Marcos Garcia, artista de Minas Gerais - "O Acrobata das Cores"
Desenho de Marcos Garcia / o “acrobata das cores”, artista de Minas Gerais

Nunca ouvi motorista de táxi mencionar “imprensa hegemônica”, que é jargão da esquerda, do jornalismo, de quem lê mídia alternativa, de quem está familiarizado com a sigla “PIG”, que muito amigo e conhecido meu desconhece.

Entrei na conversa com tudo, acabei sendo forçada a declarar meu voto (Luiza Erundina) porque, quando eu estava pagando a corrida, ele insinuou que a Marta Suplicy (atual candidata a prefeita da cidade pelo PMDB) também era boa opção. Discordei radicalmente e desci do carro convencida de que havia encontrado o primeiro motorista de táxi petista e militante.

Alardeei a notícia; meus amigos, da esquerda, duvidaram.

No domingo, peguei táxi de novo (faço isso há dois anos rotineiramente) e a conversa foi mais intrigante. O motorista foi enveredando para a esquerda, muito inteligente e delicadamente.

Voltei a declarar meu voto e também disse que havia conhecido um motorista de táxi petista.

O igualmente jovem, bonito e negro (descrevo porque a maioria dos taxistas, até pouco tempo, tinha perfil físico bem diferente e, geralmente, é mais velho) garantiu que não há motorista de táxi que vote no atual prefeito (o Fernando Haddad, do PT), candidato à reeleição. Na sequência, muito sutilmente, elogiou a Marta Suplicy.

Não tive dúvida, sabia que estava conversando com um jovem muito inteligente e politizado — ele havia me perguntado, pouco antes, quem era o vice da Erundina, minha candidata, eu disse que não me lembrava, ele perguntou na sequência, “é o Ivan Valente”? Concordei e recebi informação complementar: “é deputado federal” –, comecei a apresentar fatos do passado.

Estávamos a caminho do bairro burguês onde moro (Perdizes), falei que eu já tinha votado na Erundina, mas que provavelmente ele nem havia nascido na época (1988). O motorista concordou, afirmou que ouvira falar dos feitos dela.

Eu continuei e, apontando as ruas pelas quais passávamos, disse: “Sabe o que ela fez, entre outras coisas? Mexeu no sistema da coleta de lixo, que era feita diariamente nesse bairro, assim como em outros bairros centrais. Ela criou um rodízio com a periferia e o resultado foi montoeira de lixo nessas esquinas. Todos no bairro reclamaram”.

Pela primeira vez concordamos, ele me disse: “E a periferia foi beneficiada”.

Sim, a periferia foi beneficiada. Tomei a palavra imodestamente:

“Já a Marta é bem diferente, acho que ela é uma vira-casaca – apelei para a gíria — se é que me entende”.

Devolvi para ele, aqui, um comentário que ele já havia feito comigo, quando mencionou um show do Roberto Carlos que estava sendo realizado nessa mesma noite de domingo em uma casa de espetáculos do bairro.

Duvidei porque nunca ouvi falar de Roberto Carlos no bairro e só frequentara eventos corporativos no endereço que ele citou. Nessa hora, ele me deu boa lição: “Pode-se fazer bons negócios no meio do público do Robertão, se é que me entende”.

Ele estava falando de política.

Ah, nos entendemos muito bem. Só então percebi que o motorista da sexta-feira provavelmente não ia fazer propaganda política do Haddad, estava, imagino agora, querendo chegar à Marta, que iniciou carreira no PT, elegeu-se prefeita de São Paulo pela sigla e, agora, está no PMDB do Michel Temer.

Talvez um sujeito incauto acredite que ela fez um movimento “progressista”, abandonando o “corrupto” PT para seguir o partido que, de certa forma, está “estabilizando” a economia no Brasil. Essa é a narrativa da mídia “hegemônica”, como definiria o primeiro motorista com o qual conversei, na sexta.

A Marta também pode atender a elite econômica, não a intelectual, na qual o seu ex-marido, Eduardo Suplicy, ainda é favorito.

Seja como for, o motorista que me trouxe até em casa, no domingo, não é incauto. Acolheu meus testemunhos históricos.

Deu-me um desconto na corrida (porque ele acabou dando voltas, não para me cobrar a mais, mas para ter tempo de me dar o seu recado) e ficou legitimamente feliz quando eu propus, ao fechar a porta do carro: “Que seja o melhor pra nós”!

“Que seja o melhor pra nós”, repetiu. Essa é a senha que unirá o povo, penso.

E sigo ainda mais feliz do que ele, sabendo que um jovem inteligente, bonito e negro está na “direção”, ainda que poucos se apercebam. Sairei às ruas no banco do carona e anunciarei a boa nova com todas as forças.

Nota: a autora escreve em português do Brasil

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