A encabeçar a lista está Wole Soyinka, nigeriano premiado em 1986 com o Nobel de Literatura.
Intelectuais africanos teceram críticas e apelaram em carta aberta dirigida aos líderes de África que aproveitem a crise provocada pela COVID-9 para governarem com compaixão e implementarem uma mudança radical na governação. A encabeçar a lista está Wole Soyinka, nigeriano premiado em 1986 com o Nobel de Literatura.
Segundo os subscritores, num total de 90, as ameaças que espreitam o continente africano em relação à disseminação da pandemia exigem atenção individual e colectiva porque a situação é crítica e:
não se trata de mitigar outra crise humanitária africana, mas de difundir os efeitos potencialmente prejudiciais de um vírus que abalou a ordem global e colocou em dúvida as bases da nossa convivência”
Na Carta Aberta é espelhada a ideia de que a actual pandemia provocada pelo novo coronavírus demonstra o que as classes médias prósperas das cidades africanas até agora se recusaram a enfrentar.
Eis os desabafos de quem faz um veemente apelo aos líderes africanos:
Nos últimos dez anos, vários meios de comunicação, intelectuais, políticos e instituições financeiras internacionais apegaram-se à ideia de uma África em movimento, da África como a nova fronteira da expansão capitalista; uma África a caminho de «emergir» com taxas de crescimento que são invejadas pelos países do norte.
Tal representação, repetida à vontade a ponto de se tornar uma verdade recebida, foi dilacerada por uma crise que não revelou inteiramente a extensão do seu potencial destrutivo. Ao mesmo tempo, qualquer perspectiva de multilateralismo inclusivo – ostensivamente mantida viva por anos de elaboração de tratados – é proibida.
A ordem global está-se desintegrando diante dos nossos olhos, dando lugar a uma briga geopolítica cruel. O novo contexto de guerra económica de todos contra todos deixa de fora os países do Sul Global, por assim dizer, ociosos.
Mais uma vez, somos lembrados do nosso status perene na ordem mundial em formação: a de espectadores dóceis”.
Sub-investimento crónico em saúde pública
Os intelectuais africanos que assinaram a Carta Aberta teceram críticas contundentes à liderança africana pelas péssimas políticas públicas que se arrastaram durante imenso tempo e também pela má administração das finanças públicas, que agora são perigosamente ameaçadas pela pandemia COVID-19:
Como uma tempestade tectónica, a pandemia do COVID-19 ameaça destruir as fundações dos Estados e instituições cujas falhas profundas foram ignoradas por muito tempo.
É impossível listá-las, basta mencionar o sub-investimento crónico em saúde pública e em pesquisa fundamental, realizações limitadas em auto-suficiência alimentar, má administração das finanças públicas, priorização de infraestruturas rodoviárias e aeroportuárias em detrimento do bem-estar humano”.
Sobre a necessidade de governar com compaixão
No âmbito das medidas para conter a pandemia, as criticas também assentam no facto de África ter imitado o modelo securitário de «contenção» dos países do Norte – muitas vezes sem tomar em devida consideração os contextos específicos da realidade africana, tendo sido imposto:
um bloqueio brutal às populações; aqui e ali, a violação das medidas de toque de recolher foi recebida com violência policial”.
Na opinião dos 90 críticos que assinaram a Carta Aberta, não houve compaixão, porque:
se essas medidas de contenção alcançaram o acordo de classes médias protegidas das condições de vida, com algumas possuindo a possibilidade de trabalhar em casa, elas mostraram-se punitivas e perturbadoras para aqueles cuja sobrevivência depende de actividades informais”.
No fundo, no processo de gestão da pandemia provocada pelo novo coronavírus, a grande crítica assenta no facto dos diversos governos africanos não terem levado em conta a precariedade crónica que caracteriza a maioria das populações do continente, uma questão vivamente apontada pelo responsável da Organização Mundial de Saúde.
Uma nova ideia política para África
A postura pública dos subscritores denota que a mensagem aponta também para a importância de África reformar as políticas públicas, fazê-las trabalhar em favor das populações africanas em função das prioridades do continente, portanto, tornando-se imperativo valorizar o ser humano, independentemente do seu status, e ultrapassar a lógica do lucro, dominação ou captura de poder.
Os subscritores referem que além do estado de emergência:
os líderes africanos podem e devem propor às suas sociedades uma nova ideia política para África porque esta é uma questão de sobrevivência, fundamentalmente, e não uma questão de florescimento retórico”
E por esta razão são absolutamente necessárias reflexões sobre o funcionamento das instituições estatais, sobre as funções do Estado e o papel das normas jurídicas na distribuição e no equilíbrio de poder, tudo isto, adaptado à realidade africana.
Um outro pan-africanismo – uma nova vida
As questões ligadas ao neoliberalismo assustador que atormenta África não foram esquecidas e há fortes críricas pelo facto da saúde não ser considerada como um bem público essencial.
O pan-africanismo também precisa de uma nova vida. Ele deve ser reconciliado com a sua inspiração original após décadas de deficências. Se o progresso da integração continental foi lento, o motivo tem muito a ver com uma orientação informada pela ortodoxia do liberalismo do mercado.
Em consequência, a pandemia do coronavírus revela o déficit de uma resposta colectiva continental, tanto na saúde como em outro sectores”.
Neste sentido os intelectuais subscritores exortaram aos líderes africanos para a necessidade de ponderar uma nova abordagem às questões relacionadas com a saúde pública no sentido deste sector ser concebido como bem público essencial, mudando-se os recursos humanos e as infraestruturas hospitalares para que sirvam todos os cidadãos africanos em cada país, incluindo os próprios líderes, deixando de serem tratados nos hospitais estrangeiros.
Fuga de cérebros africanos para universidades da Europa e dos EUA
Os nomes de intelectuais africanos que susbcreveram a Carta Aberta incluem países de todo o continente, nomeadamente da Nigéria (Wole Soyinka, Prémio Nobel da Literuatura), dos Camarões (Olivette Otele investigadora da Universidade de Bristol), do Chade (Kouls Lamko, dramaturgo e professor universitário, apoiante de Thomas Sankara), da Etiópia (Ayano Mekonnen, investigador na Universidade de Harvard), de Angola (Inocência da Mata, investigadora da Universidade de Lisboa) e do Senegal (Makhily Gassama, professor de letras, autor do célebre livro “L´Afrique répond à Sarkozy: contre le discours de Dakar”), entre tantos outros.
Curiosamente, praticamente todos os nomes dos intelectuais assinantes da Carta Aberta vivem fora dos seus países, preferindo investigar e trabalhar em universidades ou outras organizações europeias e dos EUA, um sinal claro do seu subaproveitamento nos países de onde são naturais, o que revela bem a falta de visão estratégica da maior parte da liderança africana, permitindo desta forma a fuga de cérebros africanos para pesquisar nas melhores universidades do mundo.
A fuga de cérebros (“brain drain”) tem sido crescente e as causas são múltiplas, desde a falta de autonomia financeira e estrutura das Instituições de Ensino Superior até devido aos problemas políticos impostos pelas ditaduras mais ou menos camufladas existentes em alguns países africanos.
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