O mundo está sob um surto pandémico. Mais que nunca comparam-se os sistemas de saúde, as medidas políticas de resposta à crise e as características sócio-económico-demográficas das nações.
“Não há nenhum caminho tranquilizador à nossa espera.
Se o queremos, teremos de construí-lo com as nossas mãos.”José Saramago, 2004
O mundo está sob um surto pandémico. Mais que nunca comparam-se os sistemas de saúde, as medidas políticas de resposta à crise e as características sócio-económico-demográficas das nações. Se os povos procuram um conforto securizante nas ciências da saúde, alguns protagonistas mediáticos e agentes do sistema económico-financeiro acicatam prenúncios de (mais) uma crise sanitária, económica e social enquanto, ao correr da pena, vão insinuando críticas à actuação política.
Neste momento, em que a todos incumbe enfrentar o sentimento de fragilidade individual e social, assistem-se a demonstrações de genuína solidariedade humana, mas também a perigosos protagonismos que arvorando-se numa ‘pseudo-neutralidade’ incitam à fragmentação e à desconfiança. Sendo que a História já demonstrou que as épocas de maior vulnerabilidade económico-social são propícias à predação financeira, não é despiciendo lembrar que intervenções onde nidificam ovos de serpente encontram terreno fértil nestas ocasiões.
As seguintes notícias exemplificam o comportamento insensível das “regras de mercado” e as intervenções (ingénuas?) de agentes (técnico-)políticos cuja visibilidade e importância social exigiriam maior sentido de responsabilidade pública.
O mercado
COVID-19 não se combate com ideologia, nem faz aceção de cor ou credo |
Laboratórios privados cobram até 200 euros por teste ao coronavírus |
Hospital Privado de Alfena encerra urgências |
Meio litro de gel desinfectante chega aos 24,95 euros e há máscaras a 10 euros |
Testes ao coronavírus rendem 2,6 milhões diariamente aos privados |
Privados querem saber se ADSE paga tratamentos da Covid-19 |
SAMS encerra hospital, despede funcionários durante um mês mas garante vínculos laborais |
Covid-19. CIP faltou à reunião de líderes com autoridades de saúde – sindicatos saíram preocupados |
Hospitais privados prontos para receber doentes com Covid-19 do SNS: O preço de cada doente ainda não está definido (…) andará à volta dos 2 mil e 500 euros nos internamentos de doentes menos graves e que pode chegar aos 10 mil euros nos doentes internados em cuidados intensivos |
Hospitais privados pedem ao Estado ‘pagamento imediato’ de dívidas: Associação Portuguesa de Hospitalização Privada e Ministério da Saúde não se entendem quanto aos valores em dívida |
ERS pede para não se cobrarem a utentes valores adicionais |
Preços inflacionados em 400%. ASAE abriu nove processos crime por especulação de preços de álcool, luvas e máscaras |
Sindicato acusa Trofa Saúde de fecho ilegal de hospital em Famalicão |
Leilão em plena crise. Máscaras cirúrgicas rendem (bom) dinheiro: Numa altura em que tanta falta fazem nos hospitais, a leiloeira Oportunity vendeu 250 máscaras cirúrgicas por cerca de 800 euros. ASAE garantiu que nada impedia o leilão |
As intervenções banais e confrangedoramente tendenciosas como: “os vírus não se combatem com ideologia” tornam-se transparentes quando se atenta ao comportamento do(s) mercado(s)…
… e dos seus poedeiros:
A ideia de transformar uma crise sanitária numa crise económica – seguindo o protocolo da Organização Mundial de Saúde – é um erro, implementado pelo Governo socialista, que não percebeu que Portugal não tinha as circunstâncias que permitiam (capacidade financeira) e sequer justificavam (mesmo nível da gravidade sanitária) o encerramento da economia.”
Rui Teixeira Santos in Sol, 04.04.2020
O técnico e o político
COVID-19: Ex-ministro do PS discorda da gestão da crise que o Governo está a fazer |
Covid-19: “Fiquei com a sensação que em Portugal só se tomam medidas à segunda-feira” |
Covid-19: Associação de Municípios Portugueses quer que tutela clarifique se desviou ventiladores oferecidos pela Galp |
Carlos Carreiras repreende Diretora Geral da Saúde, Graça Freitas |
Coronavirus: Ordem dos Médicos quer revisão de orientação da DGS e compra de mais testes |
“O Governo não estava a ouvir os especialistas (…) a honestidade passa a ser bem mais importante que até aqui porque os especialistas esses não tem duvidas nenhumas em falar verdade, não têm medo dos efeitos políticos, só estão preocupados com a realidade.”
José Miguel Júdice, SIC, 26.03.20 |
Bronca. Jornalista da RTP manda calar diretora-geral da Saúde, Graça Freitas |
Cerco sanitário ao Porto? Câmara deixa de reconhecer autoridade à DGS |
Grito de revolta: correspondente da RTP em Madrid, Daniela Santiago, arrasa portugueses |
“Não há máscaras suficientes e, por isso, arranjou-se uma desculpa, dizendo que não são eficazes” |
Ordens continuam a duvidar dos números de médicos e enfermeiros infetados e vão fazer o próprio levantamento |
Ordem dos Médicos defende que máscaras devem ser usadas por todos |
Covid-19: Presidente da Câmara de Braga critica “enormíssima insuficiência” de testes |
Na hora difícil que vivemos seria do mais elementar bom senso rejeitar todo o oportunismo calculista que fomenta o alarme social, incita ao temor e à desconfiança, enquanto prenuncia uma catástrofe de saúde. Neste momento exigir o impossível não promove a superação – pelo contrário. Agora, exigir o impossível é, objetivamente, promover o pânico e contribuir para agravar uma tempestade económico-social.
Esgravatar todas as dificuldades, todas as polémicas e potenciar qualquer atribulação para que possam ser apontados dedos acusatórios é o afã presente dos entusiastas do neoliberalismo. Segundo o seu dogma ideológico o Estado tem que falhar.
In memoriam
“E os ídolos do tempo, o tempo os apodrece
Quem vive p’ró futuro não cansa e nunca esquece.”Pedro Barroso (Cantos de Oxalá, 1996)
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
Receba a nossa newsletter
Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a Newsletter do Jornal Tornado. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.