Chegou hoje o seu fim. Há mortes que chegam assim, tarde, demasiado tarde para quem passou toda uma vida manhosa e insidiosa. Ela que dizia que cada ruga sua era sinal de cada alegria, a impostora.
De tez escura, um tanto corcunda, mal-ajeitada, usou sempre óculos enormes, sempre muito escuros, o que a tornava ainda mais escura, ao mesmo tempo que tornava o seu olhar invisível para quem a via ou ouvia, escondidos à imagem dela própria sem nunca se ter conseguido sentir e perscrutar aquele olhar. Fez-se precocemente muito velha. O seu rosto, totalmente marcado de tantas rugas e de tantos vincos, chegava a meter impressão. A fala era arrastada e melada, nunca viva ou natural. Era mestra na arte da hipocrisia. Nunca se lhe conheceu alguma, mesmo que pouca, franqueza e sinceridade, e tudo o que dizia ou fazia era acompanhado de sarcasmo e fingimento. Só com o marido ela se entendia e abria, pois que ambos atuavam com os mesmos modos de ser e de viver.
A sua personalidade beirava o desarranjo mental, tal o modo como se expressava e se fazia entender. Por algum tempo pensei ser infantilismo, depois concluí ser mesmo demencial esse seu estado, acompanhado de expressão facial a condizer.
Havia parado no tempo. Uma vida de nenhuns amigos, nenhuma vida social, apenas com os filhos e os netos tinha contacto e relacionamento. E a vida de café. O café era, aliás, a sua única porta para o mundo e para a vida. Era filha única, e quando perdeu o pai, não conseguiu prosseguir os estudos por falta de condições económicas, enveredando, assim, pelo magistério primário. Oriunda de família pobre e humilde, quis ser rica através da sua única cunhada que ela perseguia e bajulava ad nauseam. A cunhada, essa, crendo-se gostada e quem sabe amada, aquiesceu com a maior das ingenuidades e veleidades ao objetivo de toda a vida. Um manancial que o grande dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues teria para muitos dos seus capítulos “A vida como ela é.”
Chegou hoje o seu fim. Há mortes que chegam assim, tarde, demasiado tarde para quem passou toda uma vida manhosa e insidiosa. Ela que dizia que cada ruga sua era sinal de cada alegria, a impostora.
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
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