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Sábado, Dezembro 21, 2024

Crónica do Jovem Desfuturado

Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira
Médica Especialista em Saúde Publica e Medicina Tropical. Editora na "Escrivaninha". Autora e ilustradora.

Um jovem, acabado o liceu, sentia-se pressionado pelos pais para apresentar o seu plano de futuro.

Toda a família parecia concordar que, dado que seriam os progenitores a pagar ou estudos, ou formação, ou eventual procura de destino na emigração, tinham direito, de preferência por escrito, a uma coisa bem aplainada.

Disseram ao filho, depois de uma noite passada entre lençóis, a congeminar a melhor forma de o levarem a cumprir a carinhosa e precavida vontade deles, que iam organizar um jantar com alguns familiares e amigos íntimos, e nessa ocasião todos estariam dispostos a ouvir a esperada oratória.

Como atrativo para esta manobra afirmaram que após o repasto lhe entregariam, caso o famoso e esperado plano fosse aprovado por maioria simples, um cheque para ir curtir um mês de férias no Algarve.

O moço, que não era de esquadra, ainda tentou convencer os pais com uma elocução cuidada, como aprendera nas aulas de Português do 12º ano recém terminado cum laude, que invertessem a ordem dos acontecimentos. Ou seja, alvitrou que era mais curial ir primeiro de férias para o Algarve, e com os banhos de sol, que lhe escureceriam a pele depois dos banhos de mar, logo regressaria a casa, abençoado de ideias sobre como conseguir que o seu futuro deitasse sombra sobre todo e qualquer outro projeto de qualquer filho de amigos do mesmo patamar social.

Os pais sorriram, ambos de mão dada, sem desdenharem da nova habilidade do filho para estabelecer planos alternativos aos por eles desenhados. Mas recusaram contemplá-la.

Logo o moço, se vislumbrou, entalado na enorme mesa de jantar de lá de casa, para dez dias depois apresentar a sua oração definitiva de avanço sobre o seu futuro.

Ideia não tinha nenhuma. O futuro era um avanço destemperado no tempo que muito o assustava.

Durante os anos de escola, o futuro era estudar para as aulas do dia seguinte e responder a uma ou outra questão colocada pelos professores, cuja resposta estava escrita num dos livros da prateleira do quarto. A mochila cheia de papelada usada era a caixa de pandora de onde tinham finalmente escapado todos os males da sua infância e juventude e que estava cheia de esperança de que, a curiosidade, fosse a chave dos longínquos dias em que fosse dono do seu destino.

E agora apercebia-se que, como por artes mágicas, o seu destino tinha de ficar descrito numas folhas de papel que ainda teria de ir à livraria comprar.

Vestiu uma das t shirts novas que os pais lhe tinham oferecido, abriu a porta da frente de casa, desceu no elevador, atravessou o átrio onde o porteiro fardado lhe deu uns respeitosos bons dias e chegou à rua inundada da luz de um verão que chegava.

Um pensamento estranho cruzou-lhe a mente. “Teria o verão futuro”? O futuro do verão seria o outono? E o deste o inverno? Pareceu-lhe subitamente que estava metido num ciclo de acontecimentos onde ele mesmo, o moço que não era de esquadra, fazia o papel de uma daquelas folhas que o vento revolteava.

Era jovem, diziam-lhe. O futuro estava-lhe mesmo ali na frente. Mas tudo quanto conseguia distinguir era o passeio da rua onde morava desde que se lembrava. Uma espécie de agonia fê-lo voltar-se e olhar para trás.

Aquele rapazinho que ali vinha ali corajosamente a pedalar no triciclo, vestido de azul, seguido pela mãe encorajadora que o incitava à velocidade, seria ele mesmo? Talvez o tempo lhe estivesse a pregar uma partida fazendo-o regressar ao futuro, mostrando-lhe o passado.

Seria aquele menino o seu futuro filho e aquela mulher distinta e esperançada, a esposa que os pais projetavam levar-lhe ao altar?

Entre entrar na papelaria e comprar papel almaço estava um momento chave.

Lembrou-se da lâmpada de Aladino que lhe iluminava uma noite de tempestade quando, sendo menino, na cama, assustado, a Alina, a empregada, a história lhe contara.

Seria possível esfregar os candelabros da mesa de jantar para que  um génio lhe iluminasse o caminho? Ou mais valeria pesquisar no google uma daquelas histórias de sucesso de empresários que conseguiram vencer na vida? ou uma ideia caçada numa web summit e transformada na miragem de um futuro que os pais acreditavam ser o correspondente ao seu sonho de classe?

Encontrada a resposta.

Foi assim que o moço, que não era de esquadra, comprou o futuro e umas férias no Algarve.

Ilustração: Mestre Al-Kibir, de Beatriz Lamas Oliveira


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90


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