Vem saber o que acontece e onde ver a história que narra o sofrimento e a superação de um jovem obrigado por seus pais religiosos a frequentar curso de reversão da homossexualidade.
Em fevereiro deste ano, a polêmica em torno do cancelamento da exibição no Brasil do filme “Boy Erased: Uma Verdade Anulada” tomou as redes sociais. A história, que narra o drama vivido por um jovem homossexual obrigado por seus pais religiosos a frequentar um curso de “cura gay”, foi repentinamente retirada da programação dos cinemas do País dias antes de sua estreia. O fato revoltou internautas, que acusaram a distribuidora da película norte-americana, a Universal Pictures, de censura, que poderia ser provocada pelo conservadorismo que invadiu a nação brasileira, assim como pela eleição do retrógado e declaradamente homofóbico Jair Bolsonaro.
Embora a empresa tenha negado o fato, apresentando uma justificativa econômica para retirar o produto da telona nacional, a opinião pública não engoliu a justificativa. Todos os acontecimentos jogam contra a retórica da Universal, afinal, no elenco estão nomes de peso, como Nicole Kidman, Russell Crowe e Joel Edgerton, e o tema tem despertado interesse por aqui, não só pela polarização de ideias, mas também por decisão judicial recente que autorizava as até então proibidas terapias de “reversão” da homossexualidade (questão felizmente revertida pelo STF na última semana). Para tranquilizar o público, a Universal chegou a avisar que lançaria o filme em DVD em abril (risos). Isso mesmo, em DVD, em plena a era do streaming.
Enfim, a saída do filme das telas frustrou todo mundo. Como bom geminiano e curioso que sou, fiquei bastante ansioso para acompanhar a história, após ser instigado pelo trailer. Graças à Deusa, alguém lembrou que estamos no século XXI e acabou liberando a película na plataforma de aluguel de filmes online Looke, disponível desde 21 de abril. E, por R$ 9,90, eu assisti ao “filme proibido”.
Atenção, leitores, a partir de agora contém spoilers!
Então, o filme Boy Erased, que poderia ter como subtítulo em nosso país “uma exibição anulada” é uma narrativa de cunho biográfica, baseado nas memórias de Garrard Conley, interpretado por Lucas Hedges. A história evidencia o sofrimento de um jovem universitário, filho de um pastor (Russell Crowe) matriculado em uma terapia de conversão sexual após ter sua homossexualidade exposta para seus pais por um colega de faculdade.
Este episódio acontece depois de Henry, o colega que o denuncia, ficar revoltado com o afastamento de Garrard. Os dois haviam se aproximado e iniciado amizade. Embora o caso caminhasse para a um relacionamento afetivo, pelas demonstrações de desejo de ambos, o enlace é interrompido quando Henry abusa sexualmente do nosso protagonista. É uma cena daquelas que ninguém espera.
A partir desta forte sequência, o expectador conviverá com outros momentos pesados, mas coerentes com as violências vividas pela comunidade LGBTI+. Criado em uma cidade conservadora no interior dos Estados Unidos, o garoto de 19 anos acaba se submetendo, quase à custa de sua sanidade, a um processo de castração simbólica que literalmente demoniza a homoafetividade e a associa à pedofilia, ao estupro e às causas da AIDS.
Em uma cena que poderia se passar no Brasil de 2019, o pastor Victor Sykes (Joel Edgerton – também diretor do filme), que lidera a “terapia de reversão da homossexualidade”, critica rascunhos literários escritos por Garrard e o programa de ensino da sua universidade. O religioso acaba aconselhando o jovem a abandonar a faculdade, ao avaliar como doutrinadoras as leituras direcionadas pelos professores, que incluem clássicos como “Lolita”, de Vladimir Nabokov, e “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde.
Quem acompanha Garrard em todo o processo, ficando em um hotel enquanto ele passa pelas “aulas” durante o dia, é a mãe, Nancy, interpretada por Nicole Kidman. Mais uma vez, a atriz de “Mulheres Perfeitas”, faz a linha bela, recatada e do lar. Mas vai ser ela, ao perceber as contradições e violências de todo o processo, quem irá ajudar o filho. Além de sequencias tocantes, a partir de muita habilidade e delicadeza da atriz, conseguimos encontrar cenas de afeto, o elemento que vai dar a reviravolta da trama.
Após presenciar agressões e humilhações e enfrentar um grande processo de sofrimento, o menino do Estado do Arkansas começa a encontrar a verdade dentro do seu coração. Ao comparar as contradições do espaço religioso ao qual está inserido com as memórias de um encontro afetivo com outro moço, chamado Xavier – com quem passou uma noite unicamente de mãos dadas – encontrará forças pra deixar o local e assumir a sua verdadeira história.
Mas antes de atravessar a dor por completo, a notícia do suicídio de um dos colegas de “tratamento”, justamente o rapaz que o ajudou e que depois foi fundamental para a sua partida da instituição religiosa, nos deixa a mensagem final dos riscos que este processo criminoso, permitido em 36 estados estadunidenses, pode causar. O filme narra, no seu desfecho, que 600 mil pessoas LGBTI+ nos EUA já foram submetidas à “cura gay”.
Em dois episódios, o primeiro em uma consulta médica e o outro num ato de fúria da personagem de Kidman, o filme evidencia a fraude que é a suposta reversão homossexual.
O fato é que questões como a orientação sexual (gênero pelo qual a pessoa desenvolve atração sexual e laços românticos: heterossexual é quem curte alguém de outro gênero; homossexual é quem relaciona-se com o mesmo gênero e bissexual por ambos) e a identidade de gênero (gênero com que a pessoa se identifica. Há quem se perceba como homem, como mulher, como ambos ou mesmo como nenhum dos dois gêneros: são os chamados não binários) não podem ser tratadas, pois não são doenças. São apenas manifestações da diversidade humana.
Reside aí uma das principais importâncias do filme, já que ele não faz a gente chorar loucamente como “Orações para Bobby”.
O desejo e a expressão de gênero das pessoas não são meramente questões comportamentais, que podem ser modificados com processos desta natureza. É a lição que todo mundo aprende no final.
Tais iniciativas, muitas vezes conduzidas por charlatões, que nunca estudaram nada sobre medicina ou psicologia, são verdadeiras violações dos direitos humanos. Afinal, a Organização Mundial da Saúde (OMS) excluiu ainda em 1990 a homossexualidade de sua classificação de doenças e a Organização Pan-Americana da Saúde declarou em 2012 que essas “curas” não têm justificativa médica e são uma grave ameaça à saúde.
Sendo assim, terminamos essas breves palavras sobre o Boy Erased afirmando que é um filme que precisa ser visto (ou livro que precisa ser lido – saiba mais AQUI), sobretudo neste momento, onde a sociedade brasileira precisa retirar um verdadeiro véu de mentiras construídas sobre o assunto. Uma mensagem necessária de diversidade e respeito que precisar ser espalhada.
Boy Erased
por Rafael Mesquita, Jornalista profissional e mestrando em Comunicação na Universidade Federal do Ceará – UFC | Texto original em português do Brasil
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