A propósito da vitória de Bolsonaro no Brasil, João Miguel Tavares escreveu no Público de 29 de Outubro uma reflexão típica de intelectual clássica sobre a eficácia nula dos intelectuais sobre as massas.
As elites artísticas, intelectuais e jornalísticas têm de meter na cabeça de uma vez por todas que a sua influência sobre o povo, na hora do voto, é nula. Que os seus poderes de mediação e de persuasão, na era das redes, evaporaram-se de vez. Que ter escritores, comentadores, historiadores, músicos ou jornais a criar vídeos, e manifestos, e hashtags, e editoriais, e o diabo a quatro, onde do alto da sua imensa sabedoria tentam explicar ao povo brasileiro (como já haviam tentado explicar ao povo americano) em quem ele deve votar, é uma ridícula figura, por uma razão muito simples – aquele voto, o voto de dezenas de milhões de brasileiros e de norte-americanos, também é contra nós. Quando eu digo “contra nós” refiro-me a uma elite privilegiada, da qual eu próprio faço parte, e que ao longo dos séculos se convenceu de que a sua missão no mundo era desempenhar o papel social de porta-voz das minorias, dos descontentes, dos pobres, dos oprimidos, e que através desse movimento foi valorizando o seu próprio papel no mundo, assumindo-se como proprietária da boa consciência da humanidade, e acreditando que existia uma linha inquebrantável com o povo sofredor, que ela compreendia como ninguém.”
A questão intelectual da ineficácia dos intelectuais não é de agora, nem das redes sociais. É milenar. Os textos de Aristóteles sobre a virtude e a moral são comprovadamente ineficazes. Tanto como a Utopia de Thomas Moore, ou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, ou as Constituições dos vários estados do planeta, incluindo a dos pais fundadores dos Estados Unidos. Ou até o hino da alegria com música de Beethoven e letra de Schiller. A estátua da Liberdade de Nova Iorque é um êxito de estética, mas não de eficácia na promoção do produto que representa. O insucesso de escritores, filósofos, músicos, escultores, pensadores do mundo em geral é a prova de eles pertencem a uma outra espécie de seres humanos. São como os pavões entre as aves, não dão de comer ao povo. O êxito entre as aves são os frangos, é conseguir fazer dos bandos frangos de aviário que servem para churrascos. Os intelectuais clássicos (há outros, como veremos, eficazes), além de ineficazes são inúteis como os pavões.
Por mim, que sou agnóstico desde os 16 anos, há muito que deixei de acreditar na eficácia da catequese e nos sermões. Vivo na sombra dos cínicos e dos céticos, assisto ao espectáculo dos pragmáticos. Um intelectual clássico, entendido como alguém que reflicta sobre a injustiça, ou sobre a origem do mal, ou da pobreza, é como um animal num jardim zoológico convencido que a sua gaiola é o mundo real. Eu assumo que sou animal criado em cativeiro que os amigos dirão cantar e os inimigos zurrar. Uma morsa de oceanário, parece-me bem. O que escrevo, sejam os romances, sejam os comentários ao que se passa à minha volta são reflexões, não para missionar, ou mudar o mundo, alertando os seus habitantes, mas para partilhar com os meus companheiros de aquário enquanto não chega a próxima refeição. Para partilhar com pessoas que julgo pertenceram à minha espécie. Quanto aos outros a minha posição é idêntica à que tenho com as várias espécies de animais, e até vegetais, já agora.
Com os animais podemos estabelecer relações de afectos mais ou menos intensos, pode parecer que eles nos entendem e nós a eles, mas quem já amestrou cavalos, ou cães, por exemplo, sabe das limitações do diálogo, e que nem os amestradores estão livres de um coice ou de uma mordedura, nem os bichos de levarem uma chicotada ou um pontapé, ou de serem abandonados. Até quando às espécies vegetais as dificuldades de relacionamento são as mesmas que entre os intelectuais clássicos e a massa. Os intelectuais clássicos como eu e outros podemos fazer os melhores discursos para proteger as matas de Monchique e de Pedrógão que elas serão pasto das chamas e estão à mercê de qualquer incendiário pragmático: o povo gosta do espectáculo e a lenha dá dinheiro. Parece que o Bolsonaro vai pegar fogo a parte da Amazónia e não são as palavras dos intelectuais que salvarão as árvores, nem os índios. O Bolsonaro não precisa de convencer as árvores com argumentos racionais, nem os índios. Precisa de força para incendiar umas e eliminar os outros! Ele é um intelectual prático, como os que Maquiavel louvou ao escrever que a experiência mostra que só fizeram grandes coisas aqueles príncipes que tiveram em pouca conta as promessas feitas e que, com astúcia, souberam transtornar as cabeças dos homens.
As massas humanas são como as árvores e estão à mercê dos incendiários. Os intelectuais clássicos, a que JMT se referia, funcionam como as agulhetas dos bombeiros, podem ajudar a apagar uma fogueira, mas são completamente ineficazes num grande incêndio.
O grande e antiquíssimo erro dos intelectuais clássicos é o de todos verem o mal nos outros e nunca em si, de julgarem os outros por si mesmos. Julgarem que os outros se comportam determinados pela razão e não pelos instintos. Ora, o primeiro dos instintos de todos os seres é a sobrevivência. A razão não nos faz sobreviver, faz-nos viver, o que é distinto. Entre a fé a razão, as massas escolhem a fé. Ora os intelectuais utilizam a razão (tant bien que mal) para explicar o que as massas sentem. É uma luta perdida. Todos os grandes movimentos sociais assentaram na fé, em promessas, em justificações milagrosas, em assaltos. O assalto à Bastilha ou ao palácio de Inverno não foram racionais, foram uma demonstração de intelectuais eficazes sobre as massas. Os sans coulottes da revolução francesa, os bedniaks, e serednniasks e kulaks, os camponeses russos, foram apenas a carne para canhão dos intelectuais eficazes, desempenharam o mesmo papel dos votantes de ontem no Brasil e de crentes na IURD de todos os dias.
A questão do uso da razão impõe aos intelectuais eficazes um problema muito sério. Para serem eficazes, como actualmente são Trump, Bolsonaro, ou o bispo Macedo têm de se castrarem de um elemento que os intelectuais clássicos costumam prezar: a moral. O intelectual clássico apresenta-se às massas como alguém que utiliza os seus dons de inteligência para o bem delas, foi o caso de Aristóteles, de santo Agostinho, de Hobbes, de Kant. Esses são os derrotados, como Francisco de Assis, que acabou a falar aos peixes. Os intelectuais vitoriosos são os que se despojaram da moral. Os casos mais próximos e à mão são os que ganharam eleições na América, no Brasil, na Itália, são os que inventaram igrejas e deuses-mealheiro. Na realidade esses são os intelectuais eficazes, de grande sucesso, os que sabem tocar a flauta de Hamelin e levar os ratos atrás de si.
Aquilo que hoje define um intelectual não é que reflicta sobre o conflito e o compromisso, mas que saiba tocar a música de levar os ratos a atirarem-se aos abismo a cantar, ou a sambar.
este é um texto de intelectual elitista e marginal
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