Após uma campanha de vários anos contra um suposto aumento da carga fiscal, que no essencial reflectia ainda o “enorme aumento de impostos” anunciado no tempo do Governo de Passos Coelho por Vítor Gaspar, mas também um aumento da produtividade do sistema fiscal, a Direita voltou ao poder com plataformas eleitorais que anunciavam a intenção de reduzir os impostos. Todavia o novo Governo foi constituído essencialmente pelo PSD, com um CDS que é uma fracção do CDS de Paulo Portas. A IL e o partido de André Ventura recolheram os seus votos num eleitorado que tradicionalmente apoiava o PSD e o CDS, e Ventura conseguiu mesmo – e consegue ainda – recrutar directamente antigos eleitos do PSD.
Todavia estes partidos não formaram Governo em conjunto, o que teria dado origem a um Programa de Governo assaz castiço em matéria fiscal, com parentesco com as teses da direita libertária dos Estados Unidos. Aliás está ainda a recolher assinaturas um novo partido de direita que propõe que o único imposto seja o actual Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA).
Sendo os anúncios de “choque fiscal” a la Liz Truss uma tonteria, por não ser de esperar – ainda que fosse financeiramente viável num país que mantém uma dívida pública da ordem dos 100% do PIB – um impacto significativo no produto, cuja evolução no caso português depende muito do comportamento das economias dos outros países, a proposta essencial do Programa do actual Governo em matéria fiscal é a redução do IRC (2 % em cada ano) até nos levar a uma taxa de 15 %. Ora 15 % foi a taxa mínima de imposto sobre os lucros das empresas que após um intenso trabalho da OCDE para limitar a concorrência fiscal acabou por ser consensualizada na União Europeia. Descer a taxa de IRC quando as grandes empresas estão finalmente a apresentar lucros elevados, e as contribuições extraordinárias vêm sendo postas judicialmente em causa, irá, tem sido defendido, prejudicar o financiamento das despesas sociais. Acresce que o Governo e o Parlamento anteriores tinham acabado, não sei com base em que estudos, por consentir em remover os limites temporais ao reporte de prejuízos fiscais de anos anteriores. A perda de receita fiscal irá, só por aí, ser muito elevada.
Neste contexto, por que razão entrou desde já, após a formação do actual Governo, uma proposta de alteração das taxas e escalões do IRS, quando sobre a matéria dispunha já a Lei que aprovou o Orçamento do Estado para 2024, em plena execução e com tabelas de retenção na fonte já construídas?
Note-se que é insólito e imprudente vir a alterar os elementos essenciais relativos a um imposto que se encontra em plena cobrança.
Ainda mais quando, como tiveram de confessar o Primeiro-Ministro e o Ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, o valor do desagravamento inerente à proposta é muito inferior ao desagravamento – em relação a 2023 – já introduzido pela Lei do Orçamento do Estado para 2024.
Será que se não aperceberam que a proposta tinha de ser votada pela Assembleia da República? Luís Montenegro, jurista, foi Presidente do Grupo Parlamentar do PSD com Passos Coelho, Joaquim Miranda Sarmento, economista e professor do ISEG, Presidente do mesmo Grupo Parlamentar do PSD sendo Rui Rio e Luís Montenegro presidentes do Partido, certamente o sabiam, embora possa ter sucedido que não pretendessem formalizar a proposta logo a seguir. Talvez tê-lo feito fosse uma forma de fugir à confusão em que se enlearam aquando da discussão do Programa de Governo e surgiram interpretações segundo as quais a redução fiscal no IRS ia ser duplicada.
De qualquer forma tenha-se presente que:
No taxation without representation
e que governos minoritários com autorizações legislativas em matéria fiscal é coisa difícil de conseguir no actual contexto político.
Ou será que pensaram que os trabalhos apenas decorreriam com base na proposta do Governo? É um facto que constitucionalmente não podem ser apresentados pelos deputados projectos de lei que impliquem a supressão de receitas previstas no Orçamento do Estado ou aumentos das despesas nele fixadas. mas a prática parlamentar consolidada vai no sentido de que desde que o Governo não se oponha tais iniciativas podem ser apresentadas.
Ora neste caso o Governo apresentou uma proposta de lei de redução de receitas em que a perda de receita foi quantificada, e daí que todos os grupos parlamentares que o quiseram apresentaram propostas que no seu entender se continham nesse limite.
Mesmo assim o PS, cujo projecto de lei beneficiou da votação favorável do partido de André Ventura, entendeu requerer que a Unidade de Apoio Técnico Orçamental se pronunciasse sobre os encargos incorridos em caso de aprovação de cada um dos projectos de lei já aprovados na generalidade ou que baixaram sem votação à Comissão Parlamentar. Sendo a vantagem, a meu ver, dupla: couraçar os projectos contra qualquer invocação posterior de inconstitucionalidade, e dar tempo antes que se tenha de passar à votação em Comissão.
Para contrariar a invocação pelo PSD de que se passou a uma situação de “Governo de Assembleia” o Secretário-Geral do Partido Socialista, Pedro Nuno Santos, já anunciou publicamente que viabilizaria no Parlamento a aprovação dos acordos remuneratórios a que o Governo venha a chegar com as forças de segurança. O que reforça a pressão sobre os Ministérios da Administração Interna e da Justiça que na apresentação de tais propostas entraram aparentemente com o pé esquerdo.
Muito subtil…
Em todo o caso este apelo à UTAO pode ajudar a fazer passar o projecto do PCP, igualmente aprovado na generalidade. É que aquele partido até inclui nas suas disposições um elemento de criação de receita, ao prever para o último escalão de IRS o englobamento obrigatório dos rendimentos que actualmente beneficiam de taxa liberatória.
Como escrevi em tempos(i) no artigo “Armadilhas do englobamento fiscal obrigatório” defendo que o englobamento, a fazer-se, se faça sobre rendimentos reais, isto é, corrigidos da inflação. Mas era mister fazer referência a esta previsão do projecto do PCP.
Será possível que a Comissão se entenda em torno de um texto unificado ? Tal poderia ser positivo e não alimentaria uma dinâmica que levasse necessariamente a passar da redução do IRS à redução do IRC, como creio ter sido intenção do Governo ao priorizar a questão do IRS.
Não nos esqueçamos entretanto de que na Proposta de Lei do Orçamento de Estado para 2025 para além da redução da taxa de IRC aparecerá também a proposta da CIP do 15º mês isento de Taxa Social Única.
Estávamos em doce enlevo entretidos com a passagem a Comissão dos projectos de alteração ao IRS e dos projectos de supressão das portagens em parte das ex-SCUTS com efeitos a partir de 2025(ii) quando se levanta grande borrasca em torno da alegada aprovação pelo então Ministro das Finanças Fernando Medina de uns mil milhões de compromissos sem cabimento orçamental e de já ter havido recurso à dotação provisional quando habitualmente esta apenas começa a ser utilizada no Verão. Não compreendi exactamente o alcance das alegações de Joaquim Miranda Sarmento, que Luís Montenegro parece ter confirmado, nem a resposta de Medina, mas começa a causar má impressão esta invocação de que a culpa é dos antecessores(iii).
No artigo anterior “Truques nas Contas Públicas?”(iv) admiti que pudessem existir algumas práticas menos aceitáveis na operação que reduziu contabilisticamente a menos de 100 % do PIB a dívida pública relevante para efeitos de Maastricht. Veremos se a Comissão Parlamentar sabe o que perguntar.
Aqui parece-me talvez indiciada uma suborçamentação na área do Ministério da Saúde que terá tido de ser corrigida seis meses depois, por exemplo com a autorização de despesas com a compra das vacinas para a COVID-19 a ministrar no último trimestre de 2024(v). Entretanto interrogo-me sobre se as negociações salariais a que se obrigou quem prometeu não “tudo a todos”, mas “muita coisa a muitos” não vão levar pelo menos a pôr de parte os cortes de impostos.
Dos números que foram divulgados sobre a execução do Orçamento do Estado para 2024 nos primeiros meses do ano, chamaram-me a atenção os relativos à cobrança do IVA em 2024 comparada com a de 2023. Conviria que o actual Governo olhasse para eles e de modo geral para os números de cobrança de impostos, deixando de fazer estes dançar, e não assacasse culpas ao Governo anterior: a “culpa” será do Banco Central Europeu e da sua acção anti-inflacionista.
Notas
(i) Jornal Tornado, 1 de Maio de 2024.
(ii) Também constitucional.
(iii) Até Carlos Moedas, Presidente desde finais de 2021 da Câmara Municipal de Lisboa, veio dizer que é do PS a culpa dos prejuízos do Município de Lisboa em 2023…
(iv) 1 de Maio de 2004.
(v) Declaração de interesses: dada a minha idade, sou consumidor habitual dessa vacina e da vacina contra a gripe.