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Segunda-feira, Novembro 4, 2024

A dança dos ministros incómodos

Guilherme Alpiarça, em Maputo
Guilherme Alpiarça, em Maputo
Jornalista; voluntário em Moçambique desde 2012

  • Em 24 de Novembro passado, Jorge Ferrão, ministro da Educação e do Desenvolvimento Humano (MINEDH) do governo da República de Moçambique, foi exonerado pelo presidente Filipe Jacinto Nyusi. Ferrão, era reconhecido pelo seu profissionalismo e competência e como um ministro exigente e com vontade de mudar a calamitosa situação da educação no país. Não resistiu mais de ano e meio no cargo, mesmo sendo cunhado do próprio Niusy.
  • A 29 de Setembro tinha sido exonerado Pedro Couto, o reconhecidamente capaz ministro dos Recursos Minerais e Energia (um autêntico super-ministério no actual contexto económico moçambicano). As razões por trás do silêncio e da ocultação da imprensa oficial moçambicana.

Ambos foram substituídos por mulheres, o que é especialmente positivo na questão da igualdade de género, tão acarinhada em Moçambique (mas pouco praticada). Contudo, largos sectores da sociedade consideram que se trata de escolhas políticas destinadas a substituir homens que tinham ideias muito claras sobre os grandes desafios do país e não hesitavam em avançar com soluções, decisões e capacidade de afirmar a sua voz, interna e externamente.

Lutero Simango, do Movimento Democrático de Moçambique (MDM), o terceiro maior partido político do país, não exitou afirmar ao jornal @A Verdade que Jorge Ferrão “não fazia um controlo político na Educação”, mas sim, profissional e, referindo à sua substituta Conceita Sortane, comentou que os actuais dirigentes da Frelimo, o partido no poder, “optaram por uma comissária política”, pois Jorge Ferrão.

Jorge Ferrão chegou a chorar em público

Quais os “pecados” de Jorge Ferrão, que chegou a chorar em público face aos resultados da Educação em Moçambique, pouco depois de assumir o cargo? Ferrão é reconhecido pelo seu profissionalismo e competência, quesitos que cada vez faltam mais no Governo, e é demitido enquanto decorrem os exames nacionais quiçá para que exista menos controle e não se repitam as reprovações em massa do ano passado. Chegou ao renomeado MINEDH (acrescentou-se a vertente do Desenvolvimento Humano ao antigo Ministério da Educação) com vontade de mudar a qualidade de Educação que se fazia em Moçambique. Falou com inúmeros interlocutores para concluir o que era evidente: o agora denominado capital humano(as crianças e jovens moçambicanos) não estão a aprender as habilidades necessárias para conseguir emprego.

Segundo um antigo responsável ministerial, que solicitou anonimato ao Jornal “Tornado”:

“O Ferrão deu continuidade e reforçou os exames e o ensino pré-escolar, batalhou pela colocação de carteiras nas salas de aula e pela sua melhoria das próprias salas”

“o maior controlo durante as avaliações e os exames em 2015 levarou a um grande aumento das reprovações e isso desnudou a realidade anterior, e presente, de alunos cábulas e de professores corruptos”.

Governo debaixo de fogo

O Governo não pode, sobretudo numa altura em que está debaixo do fogo dos Parceiros internacionais, apresentar estes números de:

“fracasso alarmante na educação, onde alunas e alunos pagam para passar exames, onde os directores das escolas e os professores comparecem tão pouco nos seus locais de trabalho e onde os alunos estão muito mais preocupados com a novela brasileira ou em trabalhar na machamba dos pais ou encarregados do que em ir à escola – e mais de metade não vai!”

Exclama este antigo responsável, que atribui à determinação de Jorge Ferrão, mesmo que à custa de um aumento dos chumbos escolares durante um par de anos, a decisão presidencial de o substituir por uma nova ministra que, além de professora, tem como curriculum a sua carreira partidária e parlamentar na Frelimo. “Repare que ele foi demitido no decurso dos exames nacionais”, concluiu.

O deputado da Renamo, o maior partido da oposição, à Assembleia da República, António Muchanga, um dos mais ferozes porta-vozes da Renamo, encarregado de missões difíceis e do confronto verbal nas televisões e na própria Assembleia da República, afirmou, entretanto, que:

“na altura em que Graça Machel era ministra da Educação, um professor com mau comportamento era despromovido. O docente primário que apresentasse mau aproveitamento pedagógico era afastado e ficava contínuo ou servente, disse António Muchanga”.

Estas declarações não são inocentes, permitindo à Renamo tentar mostrar aos moçambicanos que os actuais dirigentes da Frelimo estão a desvirtuar e cada vez mais distantes do espírito do primeiro e amado Presidente da República do país, Samora Machel, marido de Graça, hoje presidente da poderosa Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC) e talvez a única mulher em todo o mundo que casou com dois presidentes da República: Samora e, após a morte deste em desastre aéreo, Nelson Mandela.

Bater o pé à corrupção

Pedro Conceição Couto foi exonerado cerca de dois meses antes de Ministro dos Recursos Minerais e Energia. A demissão decidida por Nyusi aconteceu igualmente num momento sensível no sector: a negociação dos últimos pormenores da exploração do gás natural na Bacia do Rovuma por parte das grandes multinacionais do sector Asnadarko (norte-americana) e ENI (italiana).

Viagem do presidente aos Estados Unidos. Exoneração de Pedro Couto. Há ligação?

Nyusi fez, pouco antes da exoneração de Pedro Couto, uma viagem de dez dias aos Estados Unidos da América durante a qual, além de se reunir com Christine Lagarde, do FMI, manteve contactos pessoais com os presidentes e principais dirigentes de algumas das potências do sector dos hidrocarbonetos, incluindo a Exxon Mobil, que possui três licenças de exploração petrolífera a sul das áreas já concessionadas e que está igualmente interessada em adquirir o seu quinhão da riqueza escondida sob as águas da costa de Moçambique.

Facto que escapou quase despercebido na imprensa local, maioritariamente controlada pelo regime: Pedro Couto não viajou com a comitiva do Presidente!

O objectivo destes encontros, divulgados pela imprensa oficiosa como sinais de grande prestígio do Presidente Filipe Nyusi, foi a evidente renegociação dos acordos já firmados, fazendo ainda mais concessões. Partindo em posição frágil em resultado da queda continuada dos preços dos hidrocarnonetos nos anos mais recentes e também pela inusitada dívida oculta contraída pelo seu antecessor e que conduziu à suspensão das contribuições dos países parceiros para o Orçamento de Estado moçambicano, era fácil supôr que Nyusi apenas poderia dar contrapartidas mais confortáveis aos concessionários das áreas gigantescas de gás natural descobertas no norte do País.

Pedro Couto travou a corrupção

As razões terão a ver, de acordo com a imprensa online que o Governo não controla, com a atitude firme e determinada de Pedro Couto enquanto ministro. Ao longo de pouco mais de um ano à frente da pasta, Pedro Couto travou a corrupção na importação de combustíveis e não cedeu aos caprichos das multinacionais. A fama de incorruptível de Pedro Couto conduziu à sua inevitável exoneração nesta lógica governamental de que o controlo político dos ministros é mais importante do que a competência. Pelo caminho, Couto conseguiu controlar a corrupção existente na aquisição de combustíveis: durante o mandato do seu antecessor, o preço do barril de petróleo baixou continuamente nos mercados internacionais mas Moçambique continuava a pagar os mesmos valores pelas importações.

Aliás, um estudo recente do Centro de Integridade Pública(CIP) apurou que a sobre-facturação nas importações de combustíveis lesou o Estado em quase 400 milhões de dólares, desde 2012

Manuel Braga, ex-director da empresa importadora de petróleo em Moçambique, a IMOPETRO, revelou que por duas ocasiões o contrato de fornecimento de combustíveis foi prorrogado, com os valores anteriores, pelo então titular da pasta da Energia: nas vésperas do X Congresso da Frelimo.

A sucessora – falta de currículum e muitas ligações

Letícia Klemens foi nomeada de seguida para suceder a Couto. Completamente desconhecida no sector, Letícia, uma esbelta presidente da Assembleia-Geral do Banco Millenium Bim (banco local participado pelo Millenium BCP português) é igualmente pouco conhecida no aparelho do Estado e na actividade partidária da Frelimo, o que levou à insinuação fácil, em múltiplas páginas do Facebook, de que teria uma relação íntima com o próprio presidente. Licenciada em Ciências Jurídicas pelo Instituto Politécnico da Universitário de Maputo, o maior mérito da nova ministra é ser ser sócia de familiares e pessoas próximas dos três anteriores Presidentes de Moçambique e, ainda, de Alberto Chipande, um general fundador da luta armada e, hoje, conhecido homem de negócios que esteve por trás da escolha de Nyusi para candidato a presidente da República de Moçambique.

“Se o antigo Presidente Armando Guebuza hipotecou as futuras receitas que o gás natural existente na bacia do Rovuma deverá gerar daqui há mais de cinco anos – endividando ilegalmente o País – o actual Chefe de Estado está rendido aos interesses empresariais em torno dessa indústria que ainda vai surgir”

Afirma-se no já referido jornal online @A Verdade para justificar a substituição de Couto por Letícia Clemens, segundo o qual Nyusi “havia sido pressionado na decisão, quiçá pelas empresas norte-americanas com quem o Presidente se avistara dias antes”. (Couto estaria a analisar minuciosamente demais os processos que culminarão com o início da exploração do gás no Norte de Moçambique).

“A escolha da sua sucessora deixa evidente que Filipe Nyusi foi “sensibilizado” pelos lobbys empresariais do partido Frelimo que estão ávidos por obter mais ganhos pessoais e pouco se importam com o desenvolvimento sustentável de Moçambique”.

Conclui @A Verdade.

Interesses empresariais

Interesses empresariais do sócios de Letícia Klemens, assim como dos seus familiares e parceiros, que se estendem do gás passando pela indústria extrativa até ao sector de energia, podem, de forma óbvia colocar em cima da mesa potenciais conflitos de interesses de Letícia no exercício da função de ministra.

Há uma semana, um dos observatórios do negócio dos hidrocarbonetos divulgava, de forma inquestionável, que o Governo terá aceite, nos últimos dias, o pagamento “in kind” (isto é, em géneros, seja lá o que isso se revelar ser) da já de si parca percentagem dos lucros da exploração do gás natural, que jamais irá parar aos bolsos do moçambicano pobre, isto é, a esmagadora maioria das pessoas do país.

Algo que Pedro Couto jamais aceitaria.

O que Jorge Ferrão queria mudar

Recentemente, vários OCS diculgaram dados concretos e assustadores sobre a realidade do Ensino em Moçambique, entre eles a Rádio France Inter (RFI) que, sendo de origem francófona, mantém uma emissão lusófona e, também, um website em língua portuguesa que em várias áreas é mais informado e detalhado que os media portugueses.

A informação que se segue é retirada, parcialmente, de um artigo publicado pela RFI

  • De acordo com um inquérito conduzido em parceria pelo Banco Mundial e o Banco Africano de Desenvolvimento, com resultados divulgados há cerca de um mês, foram constatadas graves lacunas na área do ensino em Moçambique devido a uma fraca preparação dos professores e altos níveis de absentismo dos docentes, directores de estabelecimentos bem como dos próprios alunos.
  • A pesquisa, conduzida entre Março e Junho de 2014, cobriu um universo de 200 escolas primárias e revelou que a percentagem dos professores da quarta classe que dominam 80% do currículo é apenas de 1%. O estudo revelou igualmente que 45% dos professores não estavam na escola na altura em que os pesquisadores efectuaram visitas não anunciadas aos respectivos estabelecimentos.
  • O nível de reprovação nos exames extraordinários dos ensinos primário e secundário geral é de cerca de 76%, o que, para as autoridades de Educação moçambicanas, coloca em causa a qualidade de ensino.
  • Estudos recentes mostram que o sistema de ensino em Moçambique se degrada a cada ano que passa. Na instrução primária, o problema é mais grave. Dados dos últimos anos indicam, por exemplo, que nos primeiros anos de escolaridade 41.9% de crianças sabia ler e escrever e 54.1% não sabia ler nem escrever.
  • Foi com base nessa realidade que o Ministro da Educação e Desenvolvimento Humano, Jorge Ferrão, lançou um vigoroso apelo aos professores para resgatar a qualidade de ensino no país, em Homoíne, na província de Inhambane, no sul de Moçambique, durante a graduação de 190 novos professores para o ensino primário.

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