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João de Sousa

Sábado, Novembro 2, 2024

De Covide a Tormes

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Roteiro turístico-sanitário-literário no Norte de Portugal

  1. Lagos e florestas

A ‘Viagem a Portugal’ de José Saramago de 1981 inspirou uma placa comemorativa das ‘III jornadas das bibliotecas de Julho de 2019’, colocada no local conhecido por ‘Duas Pontes’ por dar acesso a duas pontes sobre a barragem da Caniçada no rio Cávado, em Rio Caldo, uma que leva ao Gerês, outra a Vieira do Minho.

A placa, que fotografei a 11 de Agosto deste ano, dá-nos um belíssimo trecho de Saramago sobre a descida de Covide por São Bento de Porta Aberta até ao Rio Caldo – circuito de 10 km, como se pode constatar pela placa colocada perto e serve-nos naturalmente de fonte de reflexão sobre estas nossas quatro décadas de história.

O ‘grande lago sereno, liso como um espelho polido’ que tanto contribuiu para ‘a impressão de paz’ que Saramago sentiu na descida a partir de Covide, contava em Agosto de 2020 com uma perturbante esquadra naval de dezenas embarcações motorizadas, a começar por incontáveis motas de água que, quarenta anos depois da escrita de Saramago, dificilmente conduzem a qualquer impressão de paz.

Na minha viagem estival deste ano de Bruxelas até ao Norte de Portugal, contrariamente ao usual, não tive qualquer problema de congestionamento de trânsito na periferia de cidades como Paris ou Bordéus, mas tive-o nas imediações do ‘lago sereno’ de que nos falava Saramago, local onde fiquei preso no maior engarrafamento de trânsito de toda a viagem.

O lago artificial construído no rio Cávado fica a menos de quarenta quilómetros de Braga e é por isso um destino procurado pelo turismo local, para além de contar com uma considerável presença de turistas portugueses residentes no estrangeiro e de estrangeiros (estes, evitam o local na época mais frequentada pelas frotas motorizadas aquáticas).

Mas se em vez de descermos a montanha de Covide para o vale do Cávado o fizermos para o vale do Homem, mais perto, e em descida mais suave, encontraremos um lago ao qual assentam hoje as palavras de Saramago de 1981. É um lago formado pela barragem de Vilarinho das Furnas – nome da aldeia que foi submersa pela barragem sobre o rio Homem (afluente do Cávado) – e de que deixo aqui algumas fotografias (tirada a 12 de Agosto de 2020).

Quanto à floresta, a paisagem lunar que se sucede aos incêndios, deu lugar a vegetação e pequenas árvores, sendo que a deslumbrante floresta da Portela do Homem – na margem contrária à da descida de Covide para Rio Caldo – se encontra preservada. A esse propósito fiquei muito impressionado pela interpelação feita pessoalmente por guardas ambientais a todos os veículos que passavam a fronteira proibindo-os de parar em dez quilómetros do percurso até ao lago para prevenir incêndios. Floresta de árvores nativas deslumbrante, provavelmente já teria desaparecido sem esta atenção prestada que se justifica inteiramente.

Covide, aldeia minhota simpática, faz-se notar sobretudo pela profusão de restaurantes que quadram bem com as deslumbrantes paisagens naturais que a cercam.

  1. Covide e a psicose

Não creio que quem teve a ideia de colocar a placa datada de 2019 sobre o roteiro turístico de Saramago iniciado em Covide pudesse imaginar que o nome da terra fosse apropriado pela organização mundial de saúde no ano seguinte, juntando-lhe ainda, para cúmulo, a mesma data de 2019.

Quem se lembrou de apagar a localização conhecida da eclosão da pandemia não terá certamente pedido autorização ou pago direitos de autor a Covide, mas nem por isso as Terras de Bouro – nome do concelho de todas estas localidades – ficaram mais alheias às consequências da psico-pandemia.

Na barragem das Conchas construída sobre o rio Lima, nas imediações das ruínas da cidade romana de Aquis Querquennis, há uma estação balnear com águas dadas como de boa qualidade, informação em que me fiei, mas de que desconfiei ao nadar e constatar a densidade elevada de vegetação lacustre.

Senti irritação na garganta ao cair do dia, já nas margens do Cávado e constatei amigdalite no dia seguinte. O farmacêutico local, simpático, fez o que estava ao seu alcance num primeiro passo e, no dia seguinte, perante o agravamento da infecção, constatou comigo que teria de ver um médico, aconselhando-me a extensão do centro de saúde situado nas imediações.

Em Portugal, a opinião pública vitupera sazonalmente as falhas de saúde do Algarve no Verão, talvez porque quem faz opinião pública em Portugal passa férias no Algarve e não no Gerês. Na extensão do centro de saúde aglomerava-se uma pequena multidão constituída maioritariamente por portugueses residentes no estrangeiro (comprovável pelas matrículas das viaturas) que tentava desesperadamente ter alguém que pudesse dar informações.

Um senhor – presumivelmente responsável administrativo – veio ao exterior finalmente. Nada respondeu sobre as insistentes reclamações de que a linha telefónica aconselhada não dava resposta. Informou que desde Março as consultas eram gratuitas (suponho que se referia à abolição de taxas moderadoras). Em contrapartida, outra funcionária, esclarecia à margem que o serviço fechava de manhã e só dava quatro consultas à tarde. Como se não tivessem ouvido as reclamações sobre a ausência de resposta telefónica, os funcionários presentes aconselharam os presentes a telefonar e dispersar.

Fiz como os restantes e voltei a telefonar para a linha telefónica que antes nunca dava resposta. O mesmo senhor que tinha vindo à porta – reconheci-lhe a voz – respondeu agora. Assim que ouviu a palavra proibida ‘garganta’, interrompeu-me e disse-me que tinha de telefonar para um número específico e dirigir-me a um centro de saúde em Vila Verde, a cerca de uma hora de automóvel do local.

Percebi que tinha saído da esfera da racionalidade e entrado na do absurdo da corona-psicose. Depois de uma hora de automóvel, no centro de saúde em causa, fui intimado a dirigir-me a outra parte do edifício, de instalações imensas, e completamente vazio com a placa de Covid à porta (e não, não era uma referência à simpática aldeia minhota).

A funcionária examinou longamente a minha identificação belga (o cartão de saúde belga é o cartão de identidade), realizou alguns telefonemas e, ao fim de mais de um quarto de hora, mostrou-me um papel a mais de dois metros de distância perguntando-me se eu sabia o que era aquilo. Respondi-lhe que aquela distância, nem quando tinha vinte anos seria capaz de ler o que estava escrito, dado o que ela deduziu que eu era analfabeto e, sem nunca me deixar ler o referido papel me disse que a lei me obrigava a ter uma carta europeia de saúde.

Expliquei à senhora que isso era falso (é aconselhável mas não obrigatória) ao que ela me respondeu que se eu insistisse em ficar ali tinha que pagar 45 euros. Expliquei então que para quem via a sua estadia em Portugal arruinada pelo mau funcionamento dos serviços de saúde e que tinha feito duas viagens de automóvel de uma hora em vão, os quarenta e cinco euros, não tinham significado.

Disse-me ela então que a consulta não ia ter qualquer utilidade porque dependia de eu fazer teste ao dito Covid que eles não faziam e que se eu insistisse em realizar, iria implicar estar ali vários dias sem me poder assegurar o que quer que fosse.

Ao fim de algum tempo conseguimos ultrapassar o diálogo feito em linguagem de coronapsicose. A funcionária acabou por explicar-me que o melhor era dirigir-me a um hospital da Misericórdia situado a escassas centenas de metro do centro de saúde onde estávamos e esquecer o resto.

E assim fiz! Por vinte e sete euros, ao fim de uma pequena espera de tempo, tive acesso a um médico que, constatando a laringite me receitou o necessário antibiótico e pôs assim fim ao pesadelo.

Ou melhor, não pôs fim, adiou até ao meu regresso à Bélgica, onde o governo não existe e o poder parece ter sido tomado por uma secreto comité de coronapsicóticos que se esmeram em tentar tornar impossível a vida das pessoas.

Mas isso serve apenas para termos a consolação de saber que a coronapsicopatia não é exclusivo nacional e que há mesmo quem consiga fazer bastante pior nesta matéria.

O que me pareceu especificamente importante neste episódio para Portugal foi termos um centro de saúde que não deu resposta de saúde a funcionar ao lado de um hospital que as dá (e que sendo uma Misericórdia será titularmente privado, mas certamente financiado publicamente), quando nada se prevê na extensão do centro de saúde no centro turístico do Gerês em época de máxima procura. Por outro lado, eliminar taxas moderadoras e diminuir a oferta de saúde é um total contrassenso!

  1. A rota para Tormes

Privado de banhos fluviais pela infecção com que entrei em Portugal, dediquei-me a revisitar e fotografar rios entre encontros com a família e amigos a Norte do Douro em percurso memorável que terminou em Chaves no dia 17.

Na via literária o ponto alto viria a ser Tormes, cenário principal de ‘A Cidade e as Serras’. Convidado para almoçar na casa de Verão de um amigo nas margens do Douro – a algumas centenas de metros da confluência do rio Bestança no Douro, no concelho de Baião, acabei por ser convidado pelo amigo do amigo para ficar em sua casa, um pouco mais longe, ainda no concelho de Baião em… Tormes!

Que se seja convidado com esta facilidade para casa do amigo do amigo não é talvez digno de nota, porque estamos a falar de Portugal, mas ir parar a Tormes, isso é algo que não me tinha passado pela cabeça.

Estamos numa parte do Douro que é ainda administrativamente parte do distrito do Porto, que até à reforma de 1832 fazia parte da província de Entre Douro e Minho. Esta parte do Douro não faz parte da região vitivinícola do Douro, sendo antes integrada na do ‘Vinho Verde’ embora eu veja mais semelhanças das suas vinhas e do seu vinho com o Douro.

Como me lembro de ter aprendido ainda na escola, as encostas do Douro viradas a Sul tinham um microclima que as aproximava do Algarve, e na verdade, entre as vinhas do quintal do meu hospedeiro, de tudo havia, de laranjeiras, amendoeiras, kiwis, maracujás à horta das cebolas, feijões e tomates de todos os feitios e qualidades, e isto é do que me lembro de ver. Pouco antes de entrarmos em casa, vi chaparros e oliveiras. A diversidade, a irrigação, o granito e a forma da vinha eram Minho, mas o Sol era o Algarve.

O amigo do amigo, reformado e natural do local, descendia de uma funcionária da dita casa senhorial que deu origem ao romance e que entretanto se transformou na ‘Fundação Eça de Queiroz’ com um vasto espólio museológico alusivo ao escritor, o que me permitiu tirar melhor partido ainda da visita à fundação e aprender muito sobre o escritor e a sua época.

Mas o aspecto que mais me fascinou foi talvez o geográfico. Não reli ‘A Cidade e as Serras’ desde a minha juventude, e, talvez pelo mau ensino das redes férreas nacionais, tinha ficado convencido que, vindo de comboio de Paris, Eça de Queiroz só poderia ter saído para uma quinta serrana a uma curta distância de uma estação na Beira Alta ou Beira Baixa, nunca me tinha dado conta que Tormes – ou melhor o lugar da Vila Nova servido pela estação de comboio de Agrelos, onde se situava a casa senhorial dos sogros do escritor em que ele se inspirou para escrever o seu romance, baptizando-o de Tormes – era uma quinta a Norte do rio Douro.

Quando há mais de trinta anos desci pela linha do Tua para apanhar o comboio em Barca d’Alva verifiquei com espanto que a linha – já então abandonada – continuava para Salamanca. E portanto, foi por aí que Eça veio no comboio de Paris para Agrelos!

Tudo isto está hoje abandonado, mas creio que vale a pena repensar a abertura destas várias linhas, não com base em ilusões de regressos de tempos que não voltarão, mas na redinamização regional pela cultura, turismo e preservação ambiental e patrimonial.

Isto é claro, se conseguirmos ultrapassar a profunda crise psicológica em que nos encontramos.


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