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João de Sousa

Domingo, Novembro 3, 2024

De Glauber Rocha para Tom Jobim: um poema no exílio

Glauber Rocha partiu rumo ao exílio em 1971. Mesmo consagrado nos meios culturais por filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), o cineasta era considerado pelo regime militar (1964-1985) como um “inimigo interno” e teve de deixar o País. Em algum momento entre a perseguição sofrida no Brasil e a depressão vivida já no exterior, Glauber desandou a escrever poemas. O mais belo deles, Saudade, teve como tema e destinatário seu amigo Tom Jobim.

O poema para o “maestro soberano” foi composto em 1973, ano em que Glauber vivia em Roma, na Itália. O diretor-poeta estava especialmente magoado com a censura da ditadura a seu longa Cabeças Cortadas (1970), filmado na Espanha e vetado no Brasil. Conforme um relatório confidencial do Cisa (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica), de 21 de setembro de 1971, o filme tinha “objetivo político” e mostrava, “por meio do simbolismo”, todo o “rancor de Glauber Rocha em relação ao regime vigente”.

Ainda em 1970, sem trabalho no Brasil e sob cerco dos militares, o cineasta rodou o filme Der Leone Have Sept Cabeças (O Leão de Sete Cabeças) no Zaire (atual República do Congo), em co-produção italiana e alemã. Trata-se de seu longa de ficção menos visto e menos celebrado. Nas palavras do autor, “é uma história geral do colonialismo euro-americano na África – uma epopeia africana, preocupada em pensar do ponto de vista do homem do Terceiro Mundo, por oposição aos filmes comerciais que tratam de safáris”.

Ao final daquele 1970, em artigo para o semanário O Pasquim com o título “Meu Deus! Meu Deus!”, Glauber se ironizava: “peruar a redação pasquinense foi minha nova diversão no Rio depois de filmar em florestas africanas e medievos castelos espanhóis”. Em outro trecho do artigo-desabafo, Glauber diz: “Não sou dado a sentimentalismo mas estou numa fossa que cabe dentro da fossa da Tânia, morto de saudade da patota e com medo de virar um monstro (…) Fazer filme mesmo, que é meu trabalho, acho que não dá pé”. Ele conclui que “se a gente num pode viver mesmo é melhor morrer gritando que morrer miando”.

Uma vez no exílio, Glauber produz menos. Dedica-se a falar com a mídia estrangeira e a colaborar, esporadicamente, com a imprensa alternativa brasileira. É de 1971, por exemplo, a célebre entrevista que ele arrancou, na Espanha, do escritor colombiano Gabriel García Márquez, companheiro de bate-papos e uísque. Em compensação, no mesmo ano, Glauber não consegue concluir um documentário no Chile com exilados brasileiros. Viabilizar qualquer ideia para o cinema se tornara uma via-crúcis. 

Glauber poeta

A melancolia dominava o diretor brasileiro, que passou a se arriscar mais nos versos. Ainda que o Glauber poeta não esteja à altura do Glauber cineasta – que é mais inventivo, arrojado e autoral –, seus poemas não fazem feio. Em Cuba, onde trabalhou por um ano no projeto de America Nuestra, ele compôs 1 9 2 2, que denunciava, por meio de jogos de palavras, as mazelas da população brasileira:

“meu povo é triste
de pau perado
é um povo mole
de zés perado”.

Era setembro de 1972.

Seus versos ficavam cada vez mais cheios de neologismos. Só em Desejo, Glauber falou de “beijapaixonado”, “infinitamor”, “maramoroso”. A paixão dá lugar ao desespero em Absoluto Absurdo, criado durante a primeira estada do cineasta em Portugal:

“Manuel Bandeira foi pra Pasárgada,
Caymmi pra Marakangalha,
eu pra Ilha da Madeira!
Não suporto a Terra”.

Em Roma, no ano de 1973, nascem os versos de Galos, com citações a outros artistas, como os poetas Ferreira Gullar e Federico García Lorca:

“cantar galos auroras moventes
galos de lorca galos de luz
galo pedrês galo gullar
galo de festa galo caribe
galos daqueles carajos dourados
galo espora galo esporra
galo terreiro na rinha feroz
galos galinhas na boca do dia
cantando brigam galos de guerra”.

É também em Roma, e também em 1973, no mês de “ferragosto”, que um atordoado Glauber passa o dia ouvindo Matita Perê, álbum recém-lançado de Tom Jobim, que inclui a monumental Águas de Março. Em carta, Glauburu – conforme o cineasta assina – agradece ao “querido Tom”.

Convites a Tom

Os dois artistas eram próximos desde a década anterior, quando conviviam no Rio. Volta e meia, partilhavam uma mesa no tradicional bar Antonio’s, um dos preferidos da turma da bossa nova, no cruzamento das ruas Bartolomeu Mitre e Ataulfo de Paiva, no Leblon. Outro elo entre ambos era a amizade com a belíssima e talentosa atriz Odete Lara, a musa do cinema novo, que estrelou O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), de Glauber, e teve um namorico breve com Tom. 

Glauber Rocha e Tom Jobim, na década de 1960: a amizade e a inspiração mútua marcaram a relação entre os dois artistas

Glauber – que tinha o hábito de chamar amigos para fazer pontas em seus filmes – convidou Tom, em 1966, a interpretar Paulo Martins, o protagonista de Terra em Transe, livremente inspirado na vida de Mário Faustino, a quem o cineasta considerava “o maior poeta” de sua geração. O maestro recusou a proposta – não sem uma justificativa de peso: é que, no período previsto para as filmagens, ele estaria em Nova York, com Frank Sinatra, na gravação do lendário disco Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim.

O diretor baiano não desistiu. Em Antonio Carlos Jobim – Uma Biografia, o jornalista Sérgio Cabral conta que, passado o lançamento de Terra em Transe, Glauber continuou atrás da participação do amigo em um projeto seu. “Imaginava-o, por exemplo, no papel de Heitor Villa-Lobos num filme que tinha em mente ou do índio Peri, numa versão que sonhava fazer do romance O Guarani, de José de Alencar. Tom divertia-se com os convites, feitos geralmente numa das mesas do Antonio’s.”

O desejo de Glauber não se concretizou, apesar de ele ter tentado, anos mais tarde, convencer o mastro a interpretar até Lampião – outro projeto que não foi adiante. Mas em 1970, em retribuição, Tom homenageou o cineasta ao batizar de God and the Devil in the Land of the Sun (Deus e o Diabo na Terra do Sol) uma das faixas do disco Stone Flower, lançado nos Estados Unidos.

“Ave do paraíso”

Por tudo isso, quando o álbum Matita Perê caiu nas mãos e nos ouvidos do exilado Glauber, em Roma, nos idos de 1973, a sensação de nostalgia comoveu o cineasta, que escreveu ao maestro. Junto à carta, enviou o inspirado Saudade – uma poema em que, ao lado da exaltação e do agradecimento a Tom, Glauber faz uma espécie de crítica do disco, enumerando referências presentes nas músicas. O maestro ganha, ainda, dois carinhosos epítetos: “ave do paraíso” e “sabiá do Brasil”.

Roteirista e diretor, crítico de cinema e jornalista, agitador e visionário, Glauber morreu em 22 de agosto de 1981, aos 42 anos, no Rio de Janeiro, sem ter convencido Tom a interpretar Paulo Martins ou Heitor Villa-Lobos, nem Peri ou Lampião. Em 1989, sua produção poética foi compilada por Pedro Maciel, que organizou Poemas Eskolhidos de Glauber Rocha. Ali, entre centenas de versos, estava o melhor do Glauber poeta – o poema de “Glauburu” mandou para o “querido Tom”.

Tom Jobim

Leia abaixo a carta com o poema de Glauber Rocha para Tom Jobim:

Roma ferragosto de 1973

querido tom

dentro de mais um mês lhe faço uma carta porque tenho um projeto genial que precisamos fazer juntos.

no momento, depois de ter chorado algumas vezes ouvindo 
matita perê, aqui vai meu agradecimento

Saudade

nas horas tristes de exílio
me consolo com Antonio Carlos Jobim
Norte Sul Leste Oeste
eu pra você
você pra mim
ave do paraíso
Tom Jobim

os sonhos de Villa Lobos
desaguam do piano
nas veredas do violão
Antão Carlos toca e canta
mata a morte
viva paixão
Antonio Carlos Jobim
meu companheiro de sertão

nas horas tristes de exílio
me consolo com Tom Jobim
Norte Sul Leste Oeste
eu pra você
você pra mim
ave do paraíso
Tom Jobim

o sopro de Vinicius a voz de João
desintegram dissonantes velhas estações
renascem da floresta ao litoral
gemidos pios assovios sons notas cantos
da bossa cada sempre cada vez mais nova
da marcha da valsa do samba da roda
do frevo do choro do coco do baião
do romanceiro do maracatu
do cantochão
das sinfonias das terras do sem fim
do silêncio eterno dos espaços infinitos
do verso
da prosa
do amor
da flor
de Nara
de Norma
de Lara
d’eu pra você
de você para mim
Sabiá do Brasil
Antonio Carlos
Tom Jobim.

Glauburu
(ps – o eu pra você/você pra mim é roubado de Oswald de Andrade mas na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma na prática eterna do materialismo histórico e dia­lético).


por André Cintra | Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado


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