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Sexta-feira, Novembro 1, 2024

De novo a salvação da pátria

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

O cenário avançado por Miguel Sousa Tavares, em que o sistema político português se torna presidencialista, com o Presidente da República a secundarizar o Primeiro-ministro na nomeação e controlo dos membros do Governo, não parece exequível nem nas actuais circunstâncias, nem no actual quadro parlamentar.

  1. A antecipação do governo presidencial

Em artigo algo bizarro propõe Miguel Sousa Tavares a substituição do actual governo por um outro de iniciativa presidencial. Tomando em título um flagrante erro de calendário político, setembro de 1939, em vez de maio de 1940, o raciocínio do articulista é o de que por vezes se têm de substituir os generais durante as guerras.

Chamberlain não foi substituído quando, perante o colapso da sua estratégia de apaziguamento do Nazismo, se viu forçado a declarar guerra em setembro de 1939, mas sim na sequência da derrota na batalha da Noruega, que o fez perder a maioria nos comuns, em abril de 1940, e perante a invasão da Bélgica, Países Baixos e França em maio de 1940, altura em que Winston Churchill ascendeu ao cargo de Primeiro-ministro.

Pese embora a enormidade histórica – enfim, bastaria ao articulista passar os olhos pela wikipedia antes de publicar o que escreve – o argumento substantivo encontrou algum eco imediato entre os putativos salvadores da pátria (Santana Lopes, por exemplo) e merece ser avaliado. A guerra com que Miguel Sousa Tavares fez o paralelo da começada em 1939 é a psicose sanitária em que o país vive há um ano e que o tem feito descambar de absurdo em absurdo com resultados desastrosos para a saúde e estabilidade do país.

Perante essa psicose não vejo solução menos indicada que a de aumentar os poderes executivos do Presidente da República, dado que ele mais do que ninguém tem personificado o desassossego hipocondríaco que perpetua a crise, com uma sucessão de isolamentos profiláticos, testes e permanentes mudanças de humor que não só não protege como prejudica gravemente a saúde.

Se por esta razão elementar este cenário me parece esdrúxulo, não me parece tão ilógico, no entanto, que ele se venha a verificar daqui a uns meses quando os portugueses finalmente se derem conta de que a histeria colectiva levou ao colapso dos serviços de saúde, ao desequilíbrio psíquico generalizado e à maior derrocada económica de que há memória no nosso país, derrocada perante a qual o quadro partidário em que vivemos se mostra incapaz de reagir.

 

  1. A crise partidária

A primeira crise partidária atingiu o CDS, partido que teve sempre um papel relativamente secundário no panorama político português, cujos dirigentes se têm revelado sistematicamente como os menos partidariamente fiéis e que já antes tinha sido conhecido como partido do táxi.

Conseguindo até hoje manter uma aliança entre uma ala burguesa liberal e uma ala popular reaccionária, corre o risco de desaparecer pela eclosão de um partido plenamente burguês e liberal e outro plenamente reaccionário e populista.

Mais discreto tem sido o maior derrotado das presidenciais, o Bloco de Esquerda, que viu o seu eleitorado alimentar a candidatura populista de Gomes que o partido foi incapaz de enfrentar. É uma discrição que não poderá durar muito porque a hecatombe das intenções de voto do partido parece tudo menos temporária.

O PCP, pelo seu lado, prosseguiu o seu declínio progressivo de forma relativamente suave, não sendo por isso de prever nenhuma crise aberta, apenas a cada vez maior incapacidade de influenciar o rumo dos acontecimentos.

O PSD encontra-se profundamente dilacerado pela eclosão do Chega com os vários dirigentes do partido a digladiar-se publicamente sobre a estratégia a seguir. Rui Rio tem sido de resto o mais desastroso dos líderes partidários, multiplicando-se em atitudes e declarações disparatadas, como as de saudar as grandes votações do Chega no Alentejo, que se deram justamente em prejuízo do seu partido.

A inconstitucionalidade por parte do Presidente da República e a falta de senso do PSD ao aceitar decidir pelas instâncias nacionais o Governo Regional dos Açores foi um precedente que agora se irá pagar caro. O Chega, naturalmente diz que se há cerca sanitária do partido, então essa cerca não pode deixar as ilhas de fora, como de resto dirá ainda com mais força o mesmo se, como me parece provável, o PSD não conseguir disciplinar a tendência dos seus autarcas para encontrar soluções que ganhem independentemente das construções políticas nacionais.

O PS conseguiu encaixar bem o ataque desferido por Ana Gomes, sendo que a guerra que esta lhe declarou após a sua derrota presidencial, apelidando-o de ‘o mau PS’ dificilmente encontrará eco no interior do partido. Pensar que o partido estará por essa razão a salvo da sua lógica destruidora é no entanto um erro, porque tenho a certeza que ela irá aproveitar a previsível instabilidade para prosseguir a sua guerra e será certamente uma candidata a salvadora da pátria.

Apesar dos bons números das sondagens, os sinais de crise tornaram-se já óbvios e tornar-se-ão mais ainda quando passarmos da histeria covidista para o colapso económico e social. O PS sofre em pleno a usura do poder e dificilmente terá capacidade para fazer frente a um cenário de crise quando forçosamente aparecer como o principal responsável por ela.

  1. Cenários políticos

O cenário avançado por Miguel Sousa Tavares, em que o sistema político português se torna presidencialista, com o Presidente da República a secundarizar o Primeiro-ministro na nomeação e controlo dos membros do Governo, não parece exequível nem nas actuais circunstâncias, nem no actual quadro parlamentar.

Tudo pode no entanto mudar com eleições antecipadas. No final do ano, ou mesmo no princípio de 2022, umas eleições antecipadas poderão acentuar o quadro eleitoral desenhado nestas últimas eleições presidenciais, com um reforço de partidos e forças populistas e o acentuado enfraquecimento do leque partidário tradicional.

Se a oposição à coligação com o Chega que obrigou Rui Rio a recuar nas suas intenções para as autárquicas continuar como até aqui, e se geringonça se tornar inviável, poderemos então ter criadas condições para um governo de iniciativa presidencial a que o parlamento não tenha força para obstruir. Não é nada que seja impossível no actual quadro constitucional, tudo depende da força relativa do Parlamento, que ficará seriamente diminuída se não houver condições de criação de maioria.

A questão mais importante é a de saber se uma tal evolução, tantas vezes esboçada mas nunca concretizada entre nós, iria conduzir a uma forma constitucionalmente alternativa de governar, mesmo se mantendo a letra da presente Constituição, e que lugar poderão nessa nova forma de governar os candidatos a salvadores da pátria, que nessas circunstâncias emergem sempre.


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