Peço perdão aos fervorosos, mas desconfio que, se não fosse pela literatura de cordel, não falaríamos ainda hoje de Cícero Romão Batista, o Padre Cícero. Da mesma maneira, Lampião e Maria Bonita já teriam caído no esquecimento sem o verso dos cordelistas, a voz dos declamadores e o entalhe dos xilogravuristas.
Tanto o lendário casal cangaceiro quanto o carismático sacerdote cearense morreram na década de 1930 – mas continuam a inspirar um dos gêneros literários mais populares do País. Ao mesmo tempo, um gênero-gueto. Não à toa, a comunidade cordelista, esnobada pela aristocrática e mofada Academia Brasileira de Letras, resolveu se virar por conta e criou a Academia Brasileira de Literatura de Cordel. A data de fundação: 7 de setembro de 1988. Foi no Dia da Independência e foi no centenário da Abolição.
Independente e livre, sim. Mas fiel aos fatos? Nem tanto. Por que levar uma história de cordel ao pé da letra se, volta e meia, os autores se fiam mais no imaginário popular do que na realidade? É como se a literatura de cordel seguisse à risca a frase com que o velho editor Dutton Peabody (Edmond O’Brien) define o Velho Oeste num dos melhores faroestes de John Ford: “Quando a lenda precede os fatos, publique-se a lenda”.
Não que a vida real das figuras citadas acima seja desinteressante. Que o diga quem leu “Padre Cícero – Poder, Fé e Guerra no Sertão”, de Lira Neto, talvez nosso melhor biógrafo desde Fernando Morais e Ruy Castro. Ou quem foi às páginas do recém-lançado “Maria Bonita – Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço”, da jornalista Adriana Negreiros, que conta a saga cangaceira pela ótica das mulheres. São dois livraços que dão gosto de ler – mas convém adiantar que uns 80% dos mitos em torno dos biografados caem por terra.
E daí? Daí que nem por isso tais livros põem em xeque o valor histórico e cultural dos milhares de cordéis sobre os milagres atribuídos a Padim Ciço ou os supostos feitos do rei e da rainha do cangaço. Ainda que preponderante nas regiões Nordeste e Norte, o cordel é uma expressão brasileira por excelência justamente por seu vínculo com o que há de mais genuíno nos relatos e na criatividade do povo.
Na quarta-feira (19), o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) – concebido por Mário de Andrade nos mesmos anos 30 em que Padre Cícero, Lampião e Maria Bonita faleceram – divulgou uma notícia aguardada havia décadas: “Poetas, declamadores, editores, ilustradores, desenhistas, artistas plásticos, xilogravadores e folheteiros (como são conhecidos os vendedores de livros) já podem comemorar, pois agora a Literatura de Cordel é Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro”.
Chega de gueto!
De tempos em tempos, a Academia Brasileira de Literatura de Cordel faz o ranking de seus personagens mais versejados, declamados, desenhados e xilogravados. Já faz 30 anos que os três primeiros da lista – Padre Cícero, Lampião e Frei Damião, nesta ordem – não mudam. Outros três nomes – Antônio Conselheiro, Getúlio Vargas e Lula – disputam as posições seguintes.
Não é preciso gostar de cordel, nem ser eleitor do 13 ou do 65, para deduzir que, mais anos, menos anos, Lula pode passar um a um de seus concorrentes. Talvez o Brasil, em tempo de eleição, demande justamente uma realidade que se aproxime dos anseios e dos valores emanados nas narrativas da literatura de cordel.
Até porque, tardanças à parte, o título de “patrimônio cultural imaterial” chegou em ótima hora. Seja com Lula livre, seja com Fernando Haddad presidente e Manuela D’Ávila vice, não há de faltar matéria-prima para idealizar um novo Brasil e vislumbrar inúmeros novos cordéis.
Por André Cintra, Jornalista | Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV (especial PV)/ Tornado
Receba a nossa newsletter
Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a Newsletter do Jornal Tornado. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.