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Sábado, Novembro 2, 2024

De QAnon a Kyle Rittenhouse, a direita e sua realidade alternativa

José Carlos Ruy, em São Paulo
José Carlos Ruy, em São Paulo
Jornalista e escritor.

A instabilidade é uma característica permanente do capitalismo, mas a pandemia do coronavírus introduziu um novo nível de volatilidade. Em meio à turbulência, a direita nos EUA sonha mais febrilmente do que nunca com o apocalipse e o heroísmo.

por Meagan Day, em Jacobin | Tradução de José Carlos Ruy

Em 19 de agosto, o presidente Donald Trump acenou de forma positiva àqueles que acreditam na teoria da conspiração QAnon, para a qual o presidente luta secretamente para salvar o mundo de uma rede de pedofilia satânica de elite, chamando-os de “pessoas que amam nosso país”.

Uma semana depois, em 26 de agosto, o apresentador da Fox News Tucker Carlson falou com simpatia de Kyle Rittenhouse, um adolescente que, em Wisconsin, matou dois manifestantes do Black Lives Matter (BLM) e mutilou outro. Carlson sugeriu que Rittenhouse sentiu que “tinha que manter a ordem quando ninguém mais o faz”.

À primeira vista, essas provocações podem parecer isoladas. Mas estão profundamente interligadas. Em uma semana, Trump e Carlson deram luz verde a extremistas da direita, crentes na conspiração QAnon de um lado e aventureiros pró-polícia armados do outro.

Cada um deles se baseou numa mesma narrativa fundamental: as ruas dos EUA – especialmente nas cidades administradas pelo Partido Democrata, embora nenhum lugar seja seguro – estão cheias de militantes sem lei, da anarquia, que desprezam o governo, aterrorizam inocentes e ameaçam a própria civilização. Assim, o extremismo de direita, não importa de que variante, não é visto como realmente extremo, mas como racional, até heróico e patriótico.

Trump se fez de bobo a respeito da QAnon, embora, claro, ele esteja familiarizado com essa facção da direita. A maioria dos estadunidenses alfabetizados conhece em linhas gerais, e Trump assiste a mais notícias do que qualquer um, sem mencionar que fica fascinado por qualquer coisa que o elogie, como a QAnon faz. Mas mesmo enquanto tentava minimizar seu conhecimento sobre a QAnon e sua loucura fundamental, Trump enfatizou a ideia de que ele e seu governo defendem o mundo da destruição total por malfeitores sombrios, idéia que está no cerne da QAnon.

Trump: “Não sei muito sobre o movimento, exceto que entendo que eles gostam muito de mim, o que agradeço. Mas não sei muito sobre o movimento. Ouvi dizer que está ganhando popularidade…Essas são pessoas que não gostam de ver o que acontece em lugares como Portland, Chicago e Nova York e outras cidades e estados. E ouvi que essas pessoas amam nosso país e simplesmente não gostam de ver esse tipo de coisas”.

“Não sei nada sobre isso, a não ser que eles supostamente gostem de mim, e também gostariam de ver terminados os problemas nessas cidades, especialmente daquelas que estamos falando, porque não há razão para que os democratas não possam concorrer uma cidade, e se eles não puderem, enviaremos apoio federal, sejam soldados ou policiais, o que quiserem, nós os enviaremos e resolveremos seus problemas em vinte e quatro horas ou menos.

 

Resposta de Trump

O ponto crucial da teoria é a crença de que você está secretamente salvando o mundo desse culto satânico de pedófilos e canibais. Isso soa como algo de que você está atrás?

Bem, eu não ouvi isso. Mas isso é considerado uma coisa boa ou ruim? Se eu puder ajudar a salvar o mundo dos problemas, estou disposto a fazer isso. Estou disposto a me colocar lá fora. E estamos, na verdade. Estamos salvando o mundo de uma esquerda radical que destruirá este país. E quando este país se for, o resto do mundo o seguirá.

Naturalmente, os apoiadores do QAnon não encaram observações como um repúdio de sua visão de mundo, mas sim como um incentivo de que estão no caminho certo. Encorajados, fizeram comícios – marcados como protestos inócuos contra o “tráfico de crianças”, com participantes vestindo camisetas com a expressão “Child Lives Matter” – que ocorreram em dezenas de cidades, em todo os EUA, no último sábado (22), poucos dias depois dos comentários de Trump.

O apresentador da Fox News, Tucker Carlson, evitou cuidadosamente se referir à QAnon. Não é o estilo dele, que promoveu agressivamente a narrativa fundamental de caos nebuloso e crescente, projetada por aqueles que buscam conscientemente desmantelar a sociedade. Quando a segunda onda de protestos BLM começou, Carlson falou sobre eles em termos ameaçadores, caracterizando-os como de qualquer forma violentos e os acusando de defender “uma forma de tirania” e representar “uma ameaça para todos os estadunidenses”. Esses comentários são consistentes com a oratória usual de Carlson, e dá a impressão geral de que hordas de invasores inimigos – de imigrantes da América Central a estudantes universitários politicamente corretos – estão sempre a atacar as paredes do castelo.

Os comentários de Carlson sobre os crimes de Rittenhouse, que cruzou as fronteiras estaduais com um fuzil de assalto para ajudar a polícia no controle da multidão e, como ele disse, “proteger dos cidadãos”, são perfeitamente indicativos da retórica de Carlson sobre os protestos. Como Trump, Carlson deu a entender que a polícia deveria ter sido mais agressiva com os protestos contra o tiroteio em que Jacob Blake foi ferido a tiros pela polícia de Kenosha (Wisconsin). A cidades evoluiu para a anarquia porque as autoridades responsáveis a provocaram. Os responsáveis, desde o governador, recusaram-se a fazer cumprir a lei. Eles recuaram e viram Kenosha queimar. Então, estamos realmente surpresos que saques e incêndios criminosos logo evoluíram para assassinato?

Ficamos chocados com o fato de jovens de 17 anos, armados com rifles, terem decidido que precisavam ajudar a manter a ordem quando ninguém mais o faz? A polícia já estava sendo agressiva: usou grandes quantidades de gás lacrimogêneo contra os manifestantes e até recebeu bem a ajuda de civis armados que consideraram estar a seu lado. O chefe da polícia de Kenosha culpou os manifestantes pelos crimes de Rittenhouse e os comentários do xerife de Kenosha repetiram outros de 2018, que recomendou trancar ladrões de lojas negros e outras “pessoas do lixo” em “armazéns” até que “morram” e “desapareçam completamente”. Isso não sugere um alto escalão da aplicação da lei capaz de acompanhar os manifestantes do BLM. A imagem que Carlson quer retratar é a de um governo maliciosamente negligente que não faz nada para proteger pessoas inocentes enquanto o mundo se desfaz pelas costuras.

Há anos, milhões de pessoas ouvem as palavras pessimistas de Carlson, que exageram ameaças. Muitos deles foram compelidos por comentários como o dele e pela mitologia que construíram para vasculhar a internet com medo e indignação. Mais do que um punhado navegou seu caminho para o mundo das teorias da conspiração e extremismo reacionário, que incentivam o vigilantismo de milicianos.

Depois de um tempo pensando em seu próprio ódio e horror, seu senso de realidade se deforma e se desfaz, várias pessoas finalmente decidem resolver o problema por conta própria. Alguns perseguem civis aleatoriamente, que confundem com sequestradores pedófilos com seus carros, ou que tramam para invadir lares. Outros patrulham protestos contra a injustiça racial com, não apenas apoiando, mas, em suas mentes, tornando-se pessoalmente a “linha azul tênue” entre a civilização e o caos.
Essas ideias são perigosas. No caso de Rittenhouse, resultaram em duas mortes e um ferido.

Para combatê-los, precisamos entender por que estão ganhando espaço.

A verdade é que o mundo está mudando. Por décadas, a estabilidade na vida de muitos estadunidenses foi prejudicada por políticas e processos que aumentam os lucros de um punhado de pessoas ricas e os livram do pagamento de impostos. A transformação social constante é endêmica ao capitalismo. Mas esse processo é acelerado e intensificado pelo neoliberalismo, que encontra uma oposição fraca ao promover austeridade e privatização, removendo assim as fontes de estabilidade sem muita pressão para substituí-las.

O resultado no último meio século foi o aumento da volatilidade e da alienação, um sentimento quase universal de deslocamento. A classe trabalhadora carrega o peso dos processos materiais que desencadeiam esse tipo de desintegração. Mas todos habitam este mundo e todos, não importa quão ricos ou pobres, são suscetíveis sob essas condições a se sentirem livres e paranóicos. Ajudado pela rápida expansão dos modos revolucionários de comunicação digital e acesso à informação, esse senso mútuo de confusão e suspeita – um do outro, do futuro – se manifesta de maneiras cada vez mais estranhas.

A pandemia de coronavírus e a paralisia econômica são o epítome desta era até agora. Milhões estão desempregados, quase duzentos mil estão mortos e a vida normal, que, para começar, não parecia muito normal, estagnou. Tudo parece especialmente surreal e sinistro, e em nenhum momento da memória viva a própria realidade foi mais contestada. Portanto, não é de admirar que a teoria da conspiração QAnon tenha começado rapidamente a radicalizar as pessoas (e alcançar vitórias políticas) durante este período peculiar.

Considere o caso de Alpalus Slyman, que encontrou QAnon pela primeira vez neste verão e, em algumas semanas estava transmitindo ao vivo uma perseguição policial em alta velocidade com sua esposa e filhos no carro, implorando para que Trump e QAnon intervissem em seu nome.

Da mesma forma, não é surpreendente que esta onda de protesto BLM tenha atraído muito mais vigilantismo inspirado na Internet do que o anterior, incluindo a presença do Boogaloo Boys, que estão a meio caminho entre QAnon e Rittenhouse, parte conspiradores apocalípticos de olhos arregalados e parte pesadamente sobreviventes armados de direita. Enquanto isso, Rittenhouse agora está sendo abertamente celebrado como um herói pelos neonazistas digitais – alguns mortalmente sérios, outros principalmente interessados ​​em “desencadear libtards” (também um hobby de Rittenhouse), e muitos no meio – cujas fileiras estão crescendo nesta época de entropia.

A instabilidade especial e a surrealidade da pandemia estão acelerando uma espécie de psicose coletiva em um segmento da direita nos EUA. Essa percepção está sendo ativamente encorajada pelos principais líderes de direita, que, como cuidadores com síndrome de Munchausen por procuração, estão adoecendo seus aderentes para mantê-los por perto.

Como resultado, um pequeno, mas crescente número de pessoas acredita que Trump está lutando contra uma conspiração satanista-pedófila-judia-canibal-Illuminati. Enquanto isso, um número muito maior de pessoas acredita em uma versão higienizada dessa história em que as forças da lei e da ordem estão mantendo sob controle as trevas BLM-antifa-democrata-imigrante-transgênero-marxista. Ou melhor, eles estão tentando mantê-lo sob controle, mas precisam de ajuda, que os orgulhosos e bravos darão de boa vontade.

Nada disso é inevitável. Essas ilusões em massa são contingentes e enraizadas em processos econômicos, políticos e culturais. E porque são contingentes, podem ser atenuados se colocarmos em movimento novos processos – aqueles que, por definição, incentivam a estabilidade e a solidariedade em vez de volatilidade e violência.

Mas é mais fácil falar do que fazer. Porque a direita, no momento, não enfrenta nenhuma oposição séria da esquerda, apenas um centro infeliz que não tem uma visão política alternativa real para a qual busca construir hegemonia, e cuja estratégia para o domínio eleitoral é absorver passivamente os refugiados de uma direita cada vez mais desequilibrada.

Até que uma verdadeira oposição de esquerda surja para confrontar a direita, Carlson e Trump, e quem quer que surja em seu rastro manterá os estadunidenses sonhando com o apocalipse e morrendo de vontade de detê-lo, sonhando com glória e matando para alcançá-lo.


por Meagan Day, Redatora da “Jacobin”, e co-autora de “Bigger than Bernie: How We Go from the Sanders Campaign to Democratic Socialism”  (“Maior que Bernie: como passamos da campanha de Sanders ao socialismo democrático”)   |   Texto em português do Brasil, com tradução de José Carlos Ruy

Exclusivo Editorial PV (Fonte: Jacobin) / Tornado


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