… e dado a entender que o dinheiro não tem cheiro.
Bem… Isso foi há dezanove séculos. “O mundo mudou”, como diz o engenheiro.
E hoje, o dinheiro tem muitos cheiros: o perfume dos banqueiros e políticos; o suor dos desempregados e condenados à indigência; o cheiro dos traficantes dos off-shores; e, sobretudo o fedor dos corruptos, os poucos que estão presos e os muitos à solta.
Dito isto, precisamos do dinheiro. Precisamos? A questão é, antes, de que tipo de dinheiro precisamos. À frente dos nossos olhos, um brutal conjunto de escolhas políticas, financeiras e culturais transformou o dinheiro de mero objecto que era, em sujeito que nos controla a vida e pode cheirar muito mal, desde o plástico dos cartões, aos negócios do tráficos de armas, drogas, pessoas, órgãos humanos e diamantes.
As confusões abundam neste assunto. Durão Barroso afirmou que Portugal ia receber uma pipa de massa, insinuando que a riqueza resulta dos fundos europeus. Tão mal aproveitadinhos, benza-os Deus! Há quem diga que ganha pouco dinheiro; a confusão é grande com rendimentos.
Riqueza é o valor de um património, a começar pelo capital humano. Rendimento é o que alguém recebe, sujeito às mil vicissitudes do valor da moeda. Agora dinheiro, dinheiro, é outra coisa. Pode mesmo resumir-se as funções do dinheiro num verso de pé-quebrado: Dizem que o dinheiro/Tem muita utilidade/ Serve de meio e padrão/ De cofre e unidade.
No Antigo Testamento, Deus e Mamon estão sempre em conflito. A ganância e a avareza são devoradoras. O Novo Testamento diz que ninguém pode servir a dois senhores. (Mateus 6:19-24). Paulo afirma em Timóteo I (16.10) que o amor pelo dinheiro é a raiz de todo o mal. E Tomás Moro – um santo da Igreja católica e do movimento comunista que escreveu a Utopia, faz agora 500 anos – repetiu o alerta. Nem ele sabia como tinha tanta razão no séc. XXI.
Desde as conchas da Polinésia, às moedas do Rei Midas – que tinha orelhas de burro – até aos depósitos em bancos e aos bitcoins, o dinheiro mudou de forma. Mas sempre com a simplicidade assustadora de ter atrás de si uma entidade que o cria do nada, e outra que o vende.
Aqui é que a porca torce o rabo. Segundo o Positive Money, movimento em crescendo na Inglaterra, cerca de 95% do dinheiro que circula é criado por bancos privados. Quem lhes permitiu isso foram os poderes soberanos. E a ideologia de serviço chama-se neoliberalismo.
Com a desregulamentação imposta pelo Consenso de Washington, criou-se a tempestade perfeita que fez do dinheiro um senhor em vez de nosso servo. A varinha mágica chama-se dinheiro escritural e que resulta da prática permitida de os bancos manterem apenas uma fracção dos depósitos recebidos sob a forma de dinheiro e outros activos financeiros e de emprestar o restante, criando dinheiro ou direitos de resgate.
A velocidade de circulação do dinheiro escritural é ajudada pelos cartões de débito e crédito. Um amigo meu que trabalha com famílias sobre-endividadas descobriu uma com 23 cartões de crédito.
O sistema das reservas fraccionadas que desrespeitou os rácios pedidos pelas entidades reguladoras; a cisão entre valor nominal do dinheiro e o seu valor de utilidade intrínseca; a abdicação dos controlos soberanos; tudo junto, deu nesta lindeza em que estamos.
Estando o dinheiro bancário exposto ao risco de insolvência da instituição de depósito, sempre que há desconfiança na instituição ou no sistema, pagamos nós, ou seja o Estado. Mais de oito anos a resgatar bancos desde 2008, mostra que não é solução.
E assim voltamos ao dinheiro ao qual até os soberanos se vergam, tanto quanto a classe média que está a ficar pobre com a austeridade e os pobres que ficaram desempregados porque o dinheiro mau expulsou o dinheiro bom e tornou-se gerador de dívida para famílias e empresas.
Só lucrou o 1% da casta de novos senhores. Por isso, abençoadas sejam as dezenas de casos de Panama Papers como as continhas de escriturário do dr. Salgado que pagou a 100 amigos. Centenas de perversos financeiros e dezenas de bancos andam a ser investigados.
Contudo, a perversão financeira dos últimos 20 anos do Ocidente e do resto do mundo, não irá parar enquanto não for bolado um plano para mudar o tipo de dinheiro que precisamos. Varoufakis caiu porque não pensou nisso. E os Prémios Nobel da Economia esfregam a carequinha sem que saia chispa.
Não há volta a dar: enquanto não tivermos um outro tipo de dinheiro não sairemos da crise, como juntamente com João Gil Pedreira e Nazaré Barros, procuro expor num livrinho a sair em Maio deste ano: “O dinheiro das nossas (dí)vidas”.