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Sábado, Dezembro 21, 2024

Debate político e desertificação

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Os planos governamentais, como de resto as análises dos Tribunais de Contas, usam e abusam do jargão das mudanças climáticas, nunca sendo claros quanto ao sentido do fenómeno, ou seja, em que medida a desertificação provoca mudanças climáticas e em que medida se dá o inverso, e menos ainda sobre a mudança climática específica a que se referem.

  1. Debate político no feminino

Uma das mais importantes mudanças na realidade política contemporânea, não me canso de o dizer, é a da eclosão das mulheres, que, nas democracias, em menos de um século, passaram do zero (nem direito a voto tinham) ao cada vez mais frequente papel de líderes políticos.

E isso é uma revolução que, talvez por ser uma revolução quotidiana, não aparece tão notável quanto o é substancialmente. Olhando retrospectivamente, creio mesmo que em Portugal terá sido a transformação política mais importante a que assistimos nos nossos 45 anos de democracia.

Dois dos mais importantes partidos parlamentares têm hoje um rosto feminino, o que me parece algo de positivo, que está para além de se gostar ou não da mensagem e da linha política desses partidos.

Não gosto de agressividade gratuita e menos ainda de grosseria no debate político, mas fico especialmente chocado quando os alvos são mulheres e as lógicas roçam o marialvismo ou mesmo a misoginia.

Pelas redes sociais sou frequentemente confrontado com repetidas faltas de respeito e cortesia que nos merecem as pessoas em geral e as mulheres em particular, que costumavam ser mais dirigidos à dirigente da ala direita da família social-democrata mas têm sido nos últimos tempos mais dirigidas à da ala esquerda.

Ao que parece (não tenho televisão), terá a senhora deputada dito algo de incongruente relativamente ao efeito das barragens. Permitam-me aqui que faça um parêntesis. Na vida real, que não na vida ficcional, as pessoas não são infalíveis, e em especial não o são se forem submetidas ao tratamento de choque chamado de ‘campanha eleitoral’ onde têm de conseguir estar em tensão permanente, sorrir a tudo e a todos, quase vinte e quatro horas por dia.

O remédio recomendado para isso, é o de ligar o piloto automático, ou seja, repetir ad nauseum, jargão, frases feitas de palavras agradáveis ao ouvido mas que não querem dizer rigorosamente nada, com boa entoação e cara alegre, e isto é assim, porque se porventura disser mil coisas, 99 acertadas e um disparate, a única coisa a que se vai dar atenção é ao disparate sendo totalmente ignoradas as coisas acertadas.

Posto isto, acho que ao falar das barragens – fosse porque um assessor lhe disse que não podia deixar de o fazer, fosse porque entende ou pressente os problemas com elas relacionados – Catarina Martins tocou num ponto essencial que conviria que abordássemos com alguma serenidade e que não nos limitássemos a massacrar a senhora por ter falado dele com pouca coerência.

Antes de abordar a essência do tema, vou ainda abordar a forma como ele tem sido tratado pelos poderes públicos.

  1. Desertificação e Tribunal de Contas

Publicou o Tribunal de Contas um relatório de auditoria ao ‘Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação’ que teve algum impacto na opinião pública e que marca um maior empenho da principal instituição de auditoria externa pública nacional na avaliação da eficiência da política pública para além da simples avaliação da legalidade e regularidade da despesa.

Com efeito, cumprindo rigorosamente a lei, podem-se desbaratar somas colossais de recursos públicos com base em opções políticas pouco assentes na realidade e mais na propaganda supostamente ‘climática’, como foi por exemplo o caso do projecto da ‘captura e sequestração de carbono’ da União Europeia que em vez de fazer desaparecer carbono da atmosfera fez desaparecer 597 milhões de Euros de erário público antes de ser abandonado.

O relatório do Tribunal de Contas interliga-se com outro da autoria do seu congénere europeu, o relatório especial n.°33, ‘Combater a desertificação na UE: uma ameaça crescente que exige mais ação’.

Ambos criticam acertadamente as autoridades pela falta de atenção que dão à desertificação, fazem críticas pontuais a alguns programas enaltecendo outros, fazem algumas recomendações com mérito e outras com pouco senso mas, e era aqui que eu queria chegar, nenhum tem a coragem e o bom senso de falar do que realmente interessa – como por exemplo, as barragens – sendo desse ponto de vista menos interessantes do que as inconsequentes palavras da dirigente do Bloco de Esquerda.

  1. Enfrentar a desertificação

Os planos governamentais, como de resto as análises dos Tribunais de Contas, usam e abusam do jargão das mudanças climáticas, nunca sendo claros quanto ao sentido do fenómeno, ou seja, em que medida a desertificação provoca mudanças climáticas e em que medida se dá o inverso, e menos ainda sobre a mudança climática específica a que se referem.

A questão é que nas últimas décadas, o Sul da Europa – e muito em particular o cantinho sudoeste da Europa onde Portugal se encontra – está a perder pluviosidade a um ritmo assustador, e isso mesmo é a justo título destacado pela ‘Agência Europeia do Ambiente’ na sua página electrónica dedicada a estatísticas pluviométricas.

Uma análise mais cuidada será obviamente necessária cruzando-a com ritmos sazonais e mudanças de temperatura, mas a grande questão é esta, e é ela que é completamente iludida nas políticas públicas e mesmo nas suas auditorias oficiais.


Tendências das precipitações anuais e de verão na Europa entre 1960 e 2015

Mudança projetada na precipitação anual e no verão

A resposta aparentemente mais óbvia para fazer face a situações desse tipo é a de compensar essa diminuição pluviométrica com irrigação, e isso é assim agora como o foi nas grandes civilizações da antiguidade que, como sabemos, nasceram de grandes planos de irrigação.

Como também é do domínio comum, a forma mais simples de fazer isso é com recurso a águas subterrâneas, mas como é também conhecido, isto equivale a ‘minerar’ água que se esgota. Para além de se esgotar, a falta dessa água origina vários fenómenos catastróficos, como o seja o afundamento das terras (subsidência dos solos em jargão técnico) levando a que, por exemplo, no Sul e Sudeste da Ásia várias cidades se estejam a afundar no Oceano. O mais famoso dos exemplos é o da capital da Indonésia, Jakarta, que o Governo pretende abandonar como capital exactamente por essa razão.

A alternativa à mineração é a das barragens, utilizando águas superficiais que de outra forma se escoam para os mares, e é isso que tem sido feito um pouco por todo o mundo, alternativa que é menos má que a da utilização não sustentável de águas subterrâneas e que em Portugal goza de uma grande popularidade, sendo criticadas apenas por implicar a inundação de património humano ou natural.

Mas será que a solução barragem é isenta de outros problemas? Bastar-nos-ia olhar um pouco à volta do mundo para vermos que isso não é assim. Desde logo, no caso onde os rios corriam para lagos ou mares interiores que secaram em virtude dessas barragens. Foi assim que foram criados e estendidos enormes desertos na Ásia Central, à volta do que já foi o mar de Aral, no Irão à volta do quase desaparecido Urmia, ou do lago Poopó na Bolívia. No Uzbequistão, o fenómeno levou já à ‘chuva de sal’ que traz a desertificação a regiões distantes do antigo mar de Aral.

Em Portugal não temos situações dessas, e os impactos negativos são naturalmente menos pronunciados, mas será que poderemos esquecê-los? Não, não podemos!

Temos que ter em conta em primeiro lugar, a questão da salinização, que é normalmente a forma como se inicia o processo de desertificação. O sal (o cloreto de sódio, e também outros em menor proporção) existe em todo o lado e é trazido naturalmente por lixiviação pelas águas da chuva.

Enquanto essas águas são abundantes, o sal trazido é também evacuado, não se colocando o problema da salinização, mas quando a quantidade de água diminui e a insolação aumenta – aumentando portanto a evaporação e por essa via a concentração de sal – começa o processo de salinização.

Se numa barragem metade da água se evapora, a concentração de sal duplica, e isso, ao longo de muitos ciclos de rega e cumulativamente a outros fenómenos que o agravam – como por exemplo, más técnicas de irrigação assentes na inundação dos campos feitas no pino do Sol – agrava substancialmente o processo climático de desertificação.

Foi assim que as grandes civilizações do passado assentes em grandes planos de irrigação colapsaram, o que deveria ser motivo mais do que suficiente para olharmos para o fenómeno com muita atenção.

Convém tão pouco esquecer que há cinquenta anos – como níveis substancialmente maiores de pluviosidade – o nível de intensificação agrícola era muito menor do que aquilo que é hoje, e isso só por si agrava substancialmente o fenómeno.

Mas nos nossos dias, contrariamente às civilizações de há milénios, não temos só o sal, temos um imenso catálogo de matérias poluentes, a começar pelas agrícolas, como o azoto, o potássio e o fósforo, que tornam o problema ainda mais agudo, poluindo os solos e os recursos hídricos – nomeadamente os subterrâneos – e dando origem a outros fenómenos, como por exemplo, a emissão de gases de estufa em quantidades e processos que estão ainda mal conhecidos.

A título de exemplo, a seca pode agravar muito as emissões de óxido nitroso, um gás com um efeito de estufa umas trezentas vezes superior ao dióxido de carbono.

Quer isto dizer que a questão do tipo de agricultura que promovemos, da estratégia hídrica que a ela está associada (tendo as barragens como um ponto forte) e as suas implicações ambientais (incluindo as climáticas entre muitas outras) tem que ser fortemente pensada.

Antes de o fazermos, conviria começar por recolher sistematicamente dados sobre o solo, a água e o ar, nomeadamente a sua contaminação por sal, de longe a mais importante mas a mais ignorada, indo muito para além da directiva europeia ‘nitratos’ que é rudimentar e insuficiente.

É de resto isto o que deveria ser a prioridade da política para enfrentar a desertificação, e é isto que as autoridades públicas e as de auditoria não equacionaram devidamente.

Como última nota no debate político, pela minha parte, pressupondo que Catarina Martins está verdadeiramente interessada no problema da desertificação, aconselhá-la-ia, a estudar Israel, sem os antrolhos fascistas, racistas e antissemíticos que têm caracterizado os pontos de vista do seu partido, para aprender o que de melhor existe no nosso mundo de reflexão e prática sobre o combate à desertificação (como em muitas outras matérias).


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