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Terça-feira, Novembro 5, 2024

Décimo aniversário do ‘Tratado de Lisboa’

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Pelo que li na imprensa, a Assembleia da República resolveu celebrar o décimo aniversário do Tratado de Lisboa com um colóquio, para o qual resolveu não convidar o Primeiro-ministro que então assinou e acolheu em Lisboa os cossignatários do mesmo, e para o qual o então Presidente da Comissão Europeia teve o bom senso de não aceitar o convite.

Celebrar o ‘Tratado de Lisboa’ parece-me tão apropriado como celebrar os 262 anos do terramoto de 1755, ou seja, não vejo qualquer razão para o fazer. Em qualquer caso penso que nesta matéria não pode vigorar a versão histórica de um qualquer Ministério da Verdade, e que, para qualquer celebração do evento o então Primeiro-ministro não poderia deixar de ser convidado.

Registo também que a Assembleia da República achou por bem não convidar como oradores um único dos parlamentares europeus, desse tempo ou do presente, fazendo-os substituir pelo funcionário do Parlamento Europeu que então desempenhava funções em Lisboa. Se convidou algum a estar presente, não sei, mas sei que eu, deputado europeu em 2007, não recebi qualquer convite.

Mas se a celebração, com a agravante do esconder dos seus principais actores e da substituição de eleitos por funcionários, me parece preocupante por sublinhar os tiques orwellianos do que se assinala, creio ser útil reflectir sobre essa matéria, da mesma forma que gostaria de ver um debate sobre como evitar que a repetição de uma catástrofe natural como a de 1755 venha a ter resultados semelhantes.

Na forma, o Tratado de Lisboa substituiu um naufragado Tratado de Roma e uma mais naufragada ainda Constituição Europeia, através de uma totalmente ilegível soma de milhares de alterações que resultaram quer do que alguns burocratas consideraram ser ‘jurisprudência’ quer de transações assimétricas de acordos, regras e procedimentos, bem como de um conjunto de inovações, das quais não consigo reter uma única que considere salutar para a construção europeia. Creio aliás que não haverá um único funcionário (obviamente muito menos político) que consiga ter uma ideia consistente e clara sobre o que representa o Tratado no seu conjunto.

Entre as inovações, assistimos à multiplicação de manifestações de poder, entre as quais as mais importantes foram as da criação de um ‘Ministro Europeu dos Negócios Estrangeiros’ (que a tradicional eufemística europeia transmutou em ‘Alto Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança’) que é simultaneamente vice de um Presidente da Comissão Europeia e eleita por um Conselho (onde estão representados os Estados), a criação de várias formações desse mesmo Conselho, uma das quais com um Presidente permanente, que divide funções com o da Comissão Europeia.

Convém aqui ter em conta que o Tratado não contempla outras inovações (como a do Presidente do Eurogrupo) que continuaram a proliferar e a aumentar a opacidade, complexidade e disfuncionalidade das instituições europeias.

Tratado de Lisboa, para continuar?

O absurdo e despropósito do arranjo institucional do Tratado de Lisboa são de tal ordem que mesmo o actual Presidente da Comissão Europeia veio recentemente a público pedir que se terminasse com o que foi a principal inovação do Tratado; a duplicação de presidentes (ele e o do Conselho).

Qualquer modulação ingerível ou voluntariamente anárquica das formas de governação resulta necessariamente na ‘lei do mais forte’, ou seja, ma imposição da vontade de quem tem a capacidade e vontade de exercer o poder, e é isso mesmo que verificámos durante estes últimos anos.

Contrariamente à ladainha com que a opinião pública europeia foi bombardeada, não creio que haja na reforma institucional trazida pelo Tratado de Lisboa qualquer passo no sentido do federalismo, mas bem pelo contrário, trata-se da redução à irresponsabilidade e impotência do que sempre foi o organismo ‘supra-estatal’ europeu: a Comissão Europeia.

Mas se a equipa encarregada de vender o Tratado de Lisboa não tentou sequer esconder o óbvio – que o enovelar institucional não resulta em qualquer avanço europeu – assentou baterias na ideia de que o Parlamento Europeu tinha ganho imenso poder, e que portanto isso queria dizer mais Europa.

Quanto ao ‘poder’ do Parlamento Europeu, nada melhor que a sua total ausência das celebrações do décimo aniversário para nos apercebermos do que significa. Para se debater a questão com um mínimo de seriedade, torna-se necessário sair das formalidades e abstracções e encarar a realidade com conhecimento de causa.

Olhemos para o orçamento, matéria que acompanhei como membro da Comissão dos Orçamentos nos dez anos que exerci as funções de deputado, e que acompanhei antes durante mais de dez anos, quer como conselheiro na representação permanente quer como eleito regional ou nacional ou ainda como assessor parlamentar.

O sistema orçamental europeu que chegou ao Tratado de Lisboa foi essencialmente concebido e posto em prática por Jacques Delors a partir de 1989 (a justo título, podemos considerá-lo como o grande refundador da Europa) e assenta em ‘Perspectivas Financeiras’ traduzidas em mapas orçamentais plurianuais e numa base legislativa clara. Se bem que o poder formal das instituições não fosse o mesmo em todos os passos, todo o pacote legislativo era aprovado por um acordo interinstitucional, o que colocava o Parlamento Europeu em igualdade de circunstâncias com as restantes instituições.

O sistema funcionou bem e permitiu um debate aberto e prolongado entre todas as opções de receita e despesa, bem como no seu suporte legal. Abaixo desse sistema, que corresponde aos grandes vectores orçamentais, subsistiu porém um complexo sistema de milhares de linhas orçamentais, que se baseiam tanto em actos jurídicos precedentes como em detalhes que se prendem com extensos comentários, e normas de regulamentação e controlo que se estendem por milhares de páginas.

Nesse domínio, de grande complexidade, era já então possível, para quem conhecesse ou estivesse interessado nos meandros de uma qualquer linha, conseguir modelar decisões orçamentais a pequenos ou grandes interesses, abertos ou encobertos.

O (mau) resultado…

O que o Tratado de Lisboa fez nesta matéria foi o de dinamitar o poder do Parlamento Europeu na aprovação das ‘Perspectivas Financeiras’ (deixou de ser parte inteira de uma acordo interinstitucional a uma entidade que tem apenas de dar o seu assentimento ao que é decidido pelos Estados), alargando em troca o seu poder de decisão nas linhas orçamentais (fundamentalmente estendendo-o às chamadas ‘despesas obrigatórias’).

Quer isto na verdade dizer que o Parlamento Europeu foi expropriado do seu poder estratégico de decisão orçamental em troca de um poder de influência com consequências potencialmente desastrosas (multiplicação da nossa recém-publicitada lógica ‘Raríssima’). Por outras palavras, deu-se um passo de enorme peso na perversão do processo democrático pela instalação de lógicas clientelares. E não creio que o que aconteceu no orçamento seja substancialmente diverso do que aconteceu noutras matérias legislativas.

A consagração da ‘lei do mais forte’ foi especialmente gravosa no domínio económico e financeiro, e aí a Europa só não explodiu, porque teve a sorte de encontrar um presidente do Banco Central Europeu que mandou às urtigas o espírito e a letra do que o Tratado de Lisboa diz em matéria de política monetária e uma chanceler alemã que, em momentos decisivos, sabotou a ortodoxia do seu Ministro das Finanças (este apoiado pelos responsáveis espanhóis e portugueses) e evitou a catástrofe. Estamos longe de ter garantias de que vamos ter a mesma sorte no próximo momento de crise.

Perante o óbvio desastre que foi o ‘Tratado de Lisboa’ temos agora a costumeira lógica da fuga em frente. O Presidente Macron, no seu discurso da Sorbonne, concluiu que a solução para os ‘Nãos’ dos referendos europeus é acabar com os referendos e substituí-los por nebulosas ‘convenções da sociedade civil’, enquanto Martin Schulz viu chegado o momento de declarar os ‘Estados Unidos da Europa’.

Pela minha parte, convicto federalista europeu, creio que o que temos pela frente é o de desfazer o Tratado fazendo ressurgir a comissão europeia como organismo de governo europeu democraticamente controlável por um Parlamento Europeu de funcionamento mais simples e transparente.

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