Agora que a sucessiva acumulação de défices catapultou a dívida pública norte-americana para o valor record de 35 biliões de dólares – montante que transforma o país no maior devedor da história mundial, facto que já levou o insuspeito FMI a avisar para a necessidade de uma rápida intervenção – é mais que aconselhável a revisão dos axiomas que têm atribuído à dívida norte-americana o invejável estatuto de activo de refúgio e a percepção de como e quanto as opções militares dos EUA condicionam o seu elevado nível de endividamento.
Uma das explicações para esta situação é o facto de desde meados do século passado que a economia americana se transformou numa enorme economia de guerra. Isso foi especialmente visível a partir do período de 1939/45 (o da chamada II Guerra Mundial) e não mudou desde então, tal tem sido a sucessão de conflitos em que os EUA se têm envolvido – desde as guerras da Coreia e do Vietname, as invasões no continente americano (Cuba, República Dominicana, Granada, Panamá e Haiti), as guerras na Europa (Bósnia e Kosovo), no Médio Oriente (Líbano, Iraque, Afeganistão Iémen e Paquistão) e no continente africano (Líbia e Somália), disfarçadas de altruísticos fins humanitários ou convertidas em modernos processos de instauração da democracia – além das possíveis intervenções não declaradas a partir das muitas centenas de bases militares espalhadas por mais de 190 países. Este processo de guerra permanente pode revelar-se muito interessante do ponto de vista dos resultados (lucros) do complexo militar-industrial, mas também pode ser responsabilizado pela destruição dos alicerces da liberdade e da democracia, de ter impedido um desenvolvimento económico mundial sustentado e equilibrado, de ter contribuído para a violação dos direitos humanos, arruinado os valores tradicionais dos países atingidos e provocado um desnecessário sofrimento para as suas populações. E não foram apenas estes os prejudicados, porque esta opção desviou muitos fundos necessários para que as sucessivas administrações norte-americanas implementassem políticas internas de habitação, infra-estruturas, cuidados médicos e educação, adequadas aos reais interesses das suas populações.
O tradicional complexo militar-industrial norte-americano (conceito normalmente usado para referir o relacionamento entre a indústria do armamento e as forças armadas) é uma comunidade estreitamente ligada que promove os seus interesses à custa de nacionais e estrangeiros, muito mais vasta que a mera indústria de armamento, pois além do fornecimento de bens e serviços de guerra, inclui já a Academia (universidades e centros de formação), os meios de comunicação e empresas de tecnologia de informação.
A realidade é que na actualidade, quer a Academia quer as empresas tecnológicas dependem tanto dos contratos oriundos do Pentágono quanto a tradicional indústria de armamento, ampliando ainda mais o bem conhecido efeito perverso da economia de guerra, que se distingue pela oferta gerar a sua própria procura. Se dúvida houver sobre esta realidade, veja-se como o complexo militar-industrial promove e financia os grupos de reflexão (think tanks), ligados ou não à Academia, que identificam (ou fabricam) os “inimigos” que justificam as guerras actuais ou as futuras que o lobbying se encarregará de fazer reconhecer pelos decisores políticos, enquanto os meios de comunicação vão preparando a opinião pública para aceitar os novos esforços orçamentais e os custos económicos e socias dos sucessivos conflitos.
Mas as ligações e interdependências vão bem mais longe que o simples lobbying pode deixar antever. Não são apenas os negócios e os subornos que este modelo pressupõe ou origina, é ainda a relação de porta giratória entre todos estes intervenientes – a indústria de armamento, o Pentágono, os think tanks, os lobistas, os meios de comunicação e a classe política – que leva os mecanismos de suborno e de porta giratória da elaboração de políticas a alimentar uma cultura de corrupção.
Existem ainda outros impactos desta cultura bélica, como sejam os elevados custos económicos e sociais internos, de que são exemplo as centenas de milhares de mortos e feridos norte-americanos e, no capítulo económico, a destruição do potencial de crescimento da economia do país, em resultado dos insuficientes investimentos na educação, saúde e infra-estruturas, e ainda, como vimos anteriormente, o acréscimo dos custos resultantes do elevado endividamento. No plano externo contabilizem-se os milhões de mortos, para não falar do fluxo de um ainda maior número de refugiados, sem esquecer que as guerras americanas arruinaram as economias de muitos países, minaram as religiões e os seus valores tradicionais, além de aniquilarem qualquer esperança de uma vida melhor aos povos dos países que delas foram alvo. Por fim, e não menos preocupante, é o facto de, contrariamente ao anunciado e desejado, a generalidade das guerras americanas terem agravado a segurança global e a protecção das populações.
Isto mesmo foi claramente afirmado em 2021, num artigo da Newsweek assinado por William M Arkin (Why america can’t end it’s “Forever Wars”), onde este jornalista e autor de várias obras sobre segurança nacional, expondo o tentáculo de interesses entre a indústria, a defesa e a política conclui que os EUA estão enredados numa teia de conflitos sem fim à vista.
Enquanto se publica isto nos EUA, por cá persiste o mais ensurdecedor ruído em torno da beatitude das opções ocidentais e um completo silêncio sobre os riscos da montanha de endividamento em que esta estratégia puramente imperialista continua a assentar.