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Terça-feira, Outubro 1, 2024

Défices, dívida e guerra

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

Agora que a sucessiva acumulação de défices catapultou a dívida pública norte-americana para o valor record de 35 biliões de dólares – montante que transforma o país no maior devedor da história mundial, facto que já levou o insuspeito FMI a avisar para a necessidade de uma rápida intervenção, com aquela dívida a ultrapassar os 120% do PIB norte-americano e a deixar antever a possibilidade desta atingir os 140% até 2032 – é mais que aconselhável a revisão dos axiomas que têm atribuído à dívida norte-americana o invejável estatuto de activo de refúgio.

A realidade é que a dívida norte-americana disparou nos últimos anos, com as duas últimas administrações (Trump e Biden) a fazerem-na crescer em cerca de 2 milhões de dólares por ano, transformando o país no maior devedor de sempre, reforçando a ideia da impraticabilidade da sua adequada liquidação, os riscos para a economia (doméstica e internacional) e justificando aquele aviso do FMI.

O rápido crescimento dos últimos anos encontrará uma explicação simplista no aumento da despesa justificado pela Covid-19, mas uma análise mais cuidada da realidade mostrará que a sua verdadeira origem resulta da assumida estratégia belicista dos EUA e da sucessão de conflitos que tem fomentado. Assim é que a estratégia beligerante dos neoconservadores Dick Cheney, Paul Wolfowitz e Donald Ramsfeld (figuras maiores da administração de George W. Bush e grandes defensores da Guerra ao Terror e da imposição pela força dos “valores democráticos”) levou a dívida norte-americana a crescer rapidamente dos 60% para os 100% do PIB, na década de 2010, algo que nem a dispendiosa Guerra do Vietname ou o derrube do Muro de Berlim (que, ainda assim, elevou a dívida dos 40% para os 60% do PIB) tinham custado.

Estabelecendo um paralelismo entre aquelas realidades e a actualidade (envolvimento nos conflitos na Ucrânia e na Palestina) tornar-se-á fácil perceber a origem do problema e as crescentes referências à necessidade de negociar com a Rússia o fim de um conflito que começa a evidenciar carências (americanas e europeias) de financiamento.

Para agravar esta situação, aumentam os receios em torno da qualidade e segurança dos próprios títulos de dívida norte-americana que, vistos anteriormente como sinónimo de baixo risco e de activos de refúgio (à semelhança do ouro), começam agora ser analisados e apreciados (valorizados) como os demais activos existentes no mercado. A confirmar-se esta tendência e as notícias que têm circulado sobre as grandes vendas de dívida norte-americana pelos chineses, cimenta-se um cenário de incerteza, agravado pelo facto da contrapartida para aquelas vendas serem compras realizadas pelas praças do Reino Unido, Canadá, Luxemburgo, Irlanda e Ilhas Caimão, todas conhecidas pelos paraísos fiscais que albergam e pelo que isso significa de menor transparência e fiscalização.

Entendida a estreita ligação entre o crescimento da dívida e as políticas belicistas e recordando que os gastos militares globais em defesa subiram 6,8% em 2023, atingindo os 2,3 mil milhões de euros, com os EUA a contabilizarem cerca de 860 mil milhões de euros (916 mil milhões de dólares), quase nove vezes a despesa da Rússia, que apesar de um crescimento de 24% se quedou pelos 109 mil milhões de dólares (cerca de 100 mil milhões de euros), fácil se torna concluir a dificuldade em manter estes níveis de gastos tanto mais que o domínio global dos EUA começa a dar sinais de desgaste devido ao enfraquecimento da sua economia e à formação de uma ordem mundial multipolar na qual Rússia, China, Índia e outros países procuram desempenhar um papel suficientemente relevante que leve Washington a ter de se relacionar com eles em termos de maior equilíbrio, especialmente depois das fracassadas sanções contra a Rússia terem revelado que os EUA não podem continuar a usar o seu poder económico para impor unilateralmente a sua vontade.

O crescimento da dívida norte-americana e o aumento do custo de vida para os seus cidadãos não parece diminuir as ambições militaristas de Washington nem o constante reforço dos apoios à Ucrânia – Joe Biden anunciou em Agosto um novo pacote de ajuda militar – ou a disponibilização de mais de mil milhões de dólares em armas para Israel. Segundo o think tank norte-americano, Council on Foreign Relations, até Maio deste ano e só para o apoio a Kiev, os EUA já disponibilizaram 175 mil milhões de dólares num conflito que ameaça escalar e incendiar o mundo e cuja incerteza no desfecho depende essencialmente do financiamento norte-americano.

O contínuo crescimento da dívida tem limites e agora que o seu montante já ultrapassa claramente os 100% do PIB, a administração norte-americana (a actual ou futuras) pode não ter outra escolha senão a da redução dos seus gigantescos gastos militares. Mas, atendendo à história do país, esta pode ser uma opção difícil de aceitar.

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