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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

Delhaize: Uma greve histórica

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Foi no dia 7 de março que os trabalhadores de uma das maiores cadeias de supermercados da Bélgica, Delhaize, iniciaram um movimento grevista. Passados quase quatro meses, embora de forma menos pronunciada, e após várias acções judiciais, a greve continua, numa das mais prolongadas batalhas do movimento laboral belga.

A Delhaize é uma empresa que tem raízes profundas na Bélgica, tendo sido criada em 1867 em Charleroi. Fundiu-se em 2015 com o grupo holandês Ahold, e desde então passou a ser gerida a partir dos Países Baixos, de resto como grande parte das empresas de distribuição europeias que usufruem neste país de condições fiscais mais vantajosas que as existentes na generalidade dos países europeus.

A Ahold Delhaize tem assim sede em Zaandam, nos subúrbios de Amesterdão, a partir de onde controla uma vastíssima rede de distribuição no mundo inteiro, incluindo Portugal (de acordo com a Wikipédia, é proprietária de 49% do Pingo Doce em parceria com a Jerónimo Martins).

Em questão está a intenção declarada pela empresa de estender a toda a sua rede um sistema de concessão dos seus supermercados a terceiros, ficando a empresa apenas com o direito a uma renda pelo uso da sua marca e contratos de fornecimento, desligando-se assim também das suas responsabilidades para com os seus trabalhadores.

A greve começou por ser total, depois foi alvo de decisões judiciais que a limitaram, e agora desenvolve-se de forma parcial, com piquetes à porta dos estabelecimentos convidando os cidadãos a boicotar os supermercados Delhaize.

Em conversa com os trabalhadores grevistas no supermercado Delhaize da zona onde moro, Roodbeek, estes explicaram-me que as posições não evoluíram desde o início, com a empresa a negar mesmo a possibilidade de rescindir os contratos com os trabalhadores (o que lhes daria direito a indemnizações proporcionais à sua antiguidade), para além de prosseguir uma política de assédio dos grevistas.

Temos assim que o movimento de concentração do comércio a retalho que começou por eliminar as antigas mercearias, volta na prática a reinventá-las, mas agora sob o domínio das grandes marcas às quais pagam rendas, marcas que se fundem e reaparecem nas zonas de baixa fiscalidade, isentas de obrigações de acordos de trabalho.

Esses mesmos supermercados são por sua vez cindidos das suas instalações físicas, que passam a ser propriedade de grandes fundos de investimento. Por exemplo, foi recentemente notícia o facto de, no âmbito de um chamado ‘projeto Amália’, o grupo alemão Tengellman ter vendido ao grupo americano LCN um pacote de cinquenta superfícies comerciais, 44 das quais Pingo Doce e as restantes Continente e Minipreço.

Temos assim a constituição de complexos grupos internacionais que juntam e separam partes importantes do comércio a retalho, que são independentes da gestão de cada loja, e sem responsabilidades para com os trabalhadores, que apenas são movidos pelo nível de renda que usufruem das partes que detêm no negócio.

Não é difícil de entender que esta batalha laboral que agora se trava na Bélgica irá seguramente ter consequências globais, incluindo naturalmente em Portugal. Se a aplicação do modelo for bem-sucedida na Bélgica, ela será seguida globalmente, a começar em países, como Portugal, em que, como vimos, a mesma empresa tem já uma posição importante.

Para além dos trabalhadores que perdem direitos, o problema coloca-se igualmente aos produtores – muito em especial aos produtores agrícolas – que ficam ainda numa posição mais frágil do que aquela em que se encontram perante este crescente oligopsónio (mercado dominado por um pequeno grupo de compradores).

Os consumidores serão também negativamente afectados porque os estabelecimentos de comércio têm de seguir a política de preços e de produtos a fornecer decididos pelas multinacionais do comércio a retalho.

Como afirma um estudo de 2019 da autoria da ‘Associação Europeia de Marcas’ (as marcas são uma vítima colateral da voragem destes novos empórios comerciais):

‘Em numerosos Estados-Membros, os retalhistas ‘franchisados’ estão em conflito aberto com os grupos retalhistas, que lhes impõem preços e quantidades. São também confrontados com a recusa dos grupos retalhistas de possibilitar às lojas em regime de franquia a opção por outras fontes de abastecimento mais baratas. Isto apesar da lei estipular que as lojas em regime de franquia, contrariamente às lojas afiliadas, têm autonomia de gestão.’

É fácil de antever a situação em que a multinacional de comércio que controla as redes de lojas afiliadas ou operando sob franquia e que nessa qualidade negoceia a compra de abastecimentos chame a si uma renda adicional de situação em prejuízo dos retalhistas, dos trabalhadores e dos consumidores.

Tudo isto quer dizer que temos de pensar seriamente na regulação do que está a acontecer com as redes de retalho, regulação que não pode ser capturada pelos regulados, como acontece frequentemente.

O que se passa com a greve dos trabalhadores da cadeia de supermercados Delhaize na Bélgica é de relevância para todos nós, muito em especial em Portugal.

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