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Domingo, Novembro 24, 2024

Debra, uma fábula brasileira

Democracia Brasileira da Silva (Debra, como é chamada pelos íntimos) nunca foi uma moça muito saudável. Logo ao nascer Tutores poderosos tomaram sua guarda e fixaram regras bem claras para seu comportamento, por exemplo: odeiam que ela finque os dois pés no chão. Dizem que é pouco higiênico.

Sempre que a menina dava mostras de sustentar seus pés na terra e desenvolver toda sua potencialidade era duramente admoestada pelos Tutores, que até toleravam certas peraltices, mas sem jamais passar de determinado ponto. Debra cresceu assim uma garota um tanto reprimida e pálida.

A senhora Massa da Silva, que acompanhava, de longe, com carinho maternal, o crescimento da Debra (pois Debra nasceu do seu ventre), nutria, porém, um certo ressentimento pelo que considerava um distanciamento aristocrático da menina, “culpa de quem a tirou de mim”, conjecturava Massa.

Com o tempo, as visitas de Debra a sua mãe foram escasseando, até que praticamente não se viam. Massa assistia com tristeza Debra passear daqui pra lá com estranhos, mal acenando de longe de quando em vez.

Ao longo do tempo, Massa, sem perceber, passou do amor para o ressentimento e depois para o rancor, rancor que se concentrou principalmente na figura da filha ingrata (“uma filha não pode deixar se manipular ao ponto de esquecer a mãe”, pensava).

A família de Debra também tinha, como toda família, seu esqueleto no armário. Era um parente distante que degenerou em agiota violento e criminoso: o Fascismo Salles de Setubal, inimigo figadal da família Silva, que prometeu solenemente matar Debra logo que ela nasceu.

Debra cresceu com este fantasma, que lhe dava calafrios. Menininha, quando pensava ver o odiado parente rondando a casa, ou quando ele aparecia em seus pesadelos, era pela mãe que Debra chamava. Os Tutores, constrangidos, eram obrigados a admitir, mesmo que por pouco tempo, a aproximação, pois, tratando-se do Fascismo, só a presença da Massa acalmava a criança aterrorizada.

Passaram-se muitos anos e Massa quase não lembrava mais deste parente malfeitor, há tanto tempo ele não dava as caras… Tinha gente que dizia que ele havia morrido. Outros passaram a espalhar que o Fascismo, afinal, não era tão mau assim.

Contudo, talvez como forma de vingança inconsciente pela mágoa que Debra lhe causou, Massa acabou colocando dentro de sua casa justamente um homem em tudo parecido com o Fascismo, o Homem de Oliveira.

Violento, Homem de Oliveira volta e meia espancava Massa, que apanhava sem reação (para quem foi abandonada pela própria filha, pancada é o de menos).

Homem de Oliveira falava muito mal dos odiados Tutores que afastaram Massa de sua preciosa filha e isso era tudo que ela queria ouvir. Tão obstinada estava em sua mágoa, que se recusava a dar crédito aos insistentes comentários dando conta de que, na verdade, Homem de Oliveira era unha e carne com a imensa maioria dos Tutores, que lhe pagavam a conta em bares e puteiros e ainda davam um dinheiro por fora. “Fofoca”, garantia Massa.

Mas a fé no Homem de Oliveira já não era a mesma de antes. As pancadas inesperadas e a constante falta de atenção foram, aos poucos, diminuindo o que, no início, era uma paixão incondicional.

Um dia, Homem de Oliveira revelou que visitou Debra. Massa estranhou. Só consegue chegar perto de Debra quem é amigo dos Tutores, nem ela que era a mãe conseguia vê-la. “Eu cheguei a Debra apesar dos Tutores e não por conta deles”, mentiu Homem de Oliveira. Massa acreditou na mentira.

Homem de Oliveira, achando que agradava a Massa, disse que os Tutores o deixam sozinho com a Debra toda vez que ele a visita. Tão logo esteve com ela ao alcance das mãos – revelou – espetou de leve uma faca em seu pescoço. Das primeiras vezes Debra gritou. Os tutores então foram ver o que estava acontecendo e encontraram Debra em estado de choque. A filha de Massa não estava aterrorizada apenas pela faca na garganta. Assim que viu Homem de Oliveira, Debra sentiu uma repulsa instintiva, mas os Tutores lhe garantiram que isso era bobagem de sua parte. Quando ela reclamou da faca em sua garganta, os Tutores – de forma tímida e sem muita convicção – chamaram a atenção de Homem de Oliveira.

Homem de Oliveira não contou para Massa que continuou a fazer o mesmo a cada encontro com sua filha e que aos poucos Debra parou de gritar e só gemia quando ele enfiava a faca um pouco mais dentro da pele.

“Quando chegar o momento propício”, pensava Homem de Oliveira, “degolarei Debra em completo silêncio. Nem gemer ela vai pois já está se acostumando com a dor da ponta da faca. Depois de matar a vagabunda direi a Massa que foi uma vingança pela traição que Debra lhe fez e ela ficará quieta. Já os Tutores, os terei quase todos ao meu lado, a maioria já confessou que não aguenta mais aquela garota raquítica, manhosa e, no fundo, rebelde, que vive chorando às escondidas pela mãe ausente, outros irão se calar e aderir por covardia. Os Tutores que resistirem estarão isolados e serão facilmente eliminados”.

O plano parece perfeito, mas Homem de Oliveira, do alto de sua arrogância, cometeu um erro de avaliação. Confundiu o rancor que a mãe abandonada nutria pela filha, com ódio, ódio que era só dele.

Alguns pensamentos começam a borbulhar na cabeça de Massa: “Como os tutores, que me afastaram da Debra para, segundo eles, protegê-la, deixam minha filha ser maltratada deste jeito?”. Massa começa a desconfiar de que, na verdade os Tutores nunca amaram a Debra.

Mas a pobre mãe não se deu conta de que Tutores e Fascismo Salles de Setubal, no fundo, fazem parte do mesmo jogo. Sua filha lhe foi tirada, por um lado, visando fazer com que a Massa ficasse inerte o máximo de tempo possível, prostrada pela dor e pela humilhante necessidade de depender da boa vontade dos Tutores para ver a própria filha e, por outro lado, objetivando impedir a Debra de crescer de forma plena. Quanto ao segundo objetivo, a diferença entre Tutores e Fascismo Salles de Setubal é apenas de método. Enquanto aqueles pretendem manter a jovem manietada e contida, este prefere matá-la sem mais delongas. E o fato mais grave que a Massa ignora: Homem de Oliveira é filho legítimo do Fascismo, esconde seu sobrenome por conveniência política e está determinado a cumprir a promessa do pai, feita quando Debra nasceu.

Ainda que de forma confusa, ideias parecidas já estão germinando no cérebro de Massa, que aos poucos vai dando mais ouvidos ao que antes chamava de “mexericos”. Quem a conhece há mais tempo diz que ela é de uma paciência exemplar, mas quando perde a cabeça…

Homem de Oliveira então chega em casa, de madrugada, como de costume. Começa a detalhar para Massa, entre gargalhadas, as torturas a que Debra – alquebrada e submissa – foi submetida desta vez. Massa escuta calada, mas em seu olhar surge um brilho diferente.

Torçamos para que seja o sinal do renascer do espírito materno. Para a Debra, não existe outra esperança. Só a mãe pode salvá-la.


por Wevergton Brito Lima, Jornalista  | Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

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