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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

Democracia e transparência

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.
  1. Balizas do debate

Comecemos por ter em conta que o rótulo ‘democrático’ é demasiado simplista. A democracia em estado mais ao menos puro terá tido lugar na Grécia clássica, mas não contemporaneamente. A democracia contemporânea é quase só indirecta, (o referendo ou a assembleia de cidadãos é excepção), não contempla escolhas aleatórias (salvo em raros casos, para a constituição de jurados) e contém mais procedimentos aristocráticos do que democráticos, ou seja, procedimentos em que é um grupo selecto de pessoas e não o conjunto dos cidadãos, que é chamado a decidir.

Entre nós, o Governo é escolhido de forma duplamente indirecta, dado que ele resulta da vontade de uma assembleia de deputados que por sua vez são seleccionados mais por partidos do que por cidadãos. O poder judicial é em regra seleccionado por meios puramente aristocráticos, sendo os EUA a grande excepção onde perduram ainda alguns factores democráticos de selecção.

Acresce a isto que a concepção política a que nos reportamos dos chamados três poderes, é a de uma sociedade pré-moderna, onde não existiam os imensos poderes públicos que decidem das mais variadas matérias de interesse público, matérias cuja complexidade obriga a critérios aristocráticos, frequentemente tecnocráticos, forma contemporaneamente mais comum de aristocracia.

A limitação ou separação de poderes, ou sistema de equilíbrios e controlos, é também um critério tomado como ‘democrático’, como o são também as arquitecturas modernas de direitos, liberdades e garantias, embora não sejam características necessárias de um sistema democrático no sentido estrito do conceito.

Posto isto, não há qualquer razão para pensar que nos sistemas democráticos contemporâneos os dirigentes sejam necessariamente mais movidos pelo que consideram ser o bem público do que pelo bem pessoal ou familiar. Aquilo que as modernas democracias reclamam é que, em virtude das regras democráticas que permitem ao povo mudar de representantes, da separação de poderes, e da liberdade de expressão, há maior capacidade desses sistemas para fazer face a abusos de poder que da parte dos sistemas não democráticos.

A escolha da palavra ‘transparência’ para referir o não abuso do poder é ela mesma intencional, porque ela apenas quer dizer que o sistema democrático pretende facilitar uma maior visibilidade às possíveis motivações privadas de actos públicos, mas de forma alguma pretende que os eleitos ou os representantes dos eleitos sejam por essa razão mais honestos do que os que não são eleitos.

Temos ainda ter em atenção que há numerosas razões que podem condicionar a prevalência de abusos de poder que não têm a ver com a natureza democrática do sistema. A título de exemplo, a Venezuela, que é uma das mais corruptas ditaduras contemporâneas, era um país já conhecido pela sua corrupção em sistema democrático.

Tudo isto para concluir que não tem qualquer sentido o debate sobre os abusos de poder como a confrontação de um sistema democrático com um não democrático, mas tem sentido debater o que pode ser feito para tornar o sistema político em que vivemos mais transparente, ou seja, um sistema em que seja mais visível e controlável qualquer abuso real ou potencial do poder.

  1. Qatargate

As instâncias europeias fazem tudo o que lhes é possível para fazer esquecer o Qatargate a que dediquei uma crónica recente no jornal Tornado. A personagem central do enredo, a Presidente da subcomissão dos direitos humanos do Parlamento Europeu, tentou mesmo voltar ao lugar, como se nada tivesse a ver com o assunto, e precisou mesmo de um empurrão suplementar da imprensa, um mês depois de desencadeado o escândalo, para finalmente anunciar que se demitiria.

O mais óbvio publicista do regime iraniano no Grupo Socialista Europeu desde que Ana Gomes deixou o Parlamento Europeu, acabou também por ser suspenso das suas funções, depois de pretender que nada tinha a ver com o assunto.

As ramificações dos tentáculos financeiros deste polvo islamista centrado neste emirato vaabita prolongam-se pela máquina institucional da Comissão Europeia, sem o que não seria possível a concertação observada nas declarações públicas sobre os progressos registados pelo Catar em matérias humanitárias ou sobre as prerrogativas em matéria de vistos.

Pelo conhecimento que tenho da matéria creio que a captura das instâncias políticas europeias pelos dirigentes desta ideologia de extrema-direita, por vezes transmutada em progressista pelo wokismo, vai muito para além destas redes agora expostas.

  1. O Covidegate

O Qatargate ocorre de forma simultânea ao Covidegate, que tem sido tratado de forma muito mais discreta; em Portugal, mesmo com um silêncio quase absoluto. O assunto é apresentado de forma clara por Nicolas Ullens numa entrevista publicada pela rede informativa belga Kairos. A Presidente da Comissão Europeia é colocada em causa na aquisição de vacinas pela União Europeia, num processo onde se repetem alguns dos problemas que marcaram a sua presença à frente do Ministério da Defesa na Alemanha.

O covidegate é o mais complexo caso contemporâneo de abuso de poder, e serve-nos também para constatar que a tradicional ‘transparência’ a que fiz alusão no ponto anterior fica aquém do necessário em matéria de defesa do interesse público.

Com a psicose colectiva covidista ficou claro que aquilo que julgávamos ser um fenómeno medieval, continua bem presente nas sociedades contemporâneas. Não se trata de pôr em causa a realidade do Covide-19. Esta pandemia, como a generalidade das pandemias e outras catástrofes do passado, foi real. O que está em causa é a reacção a essa catástrofe, ditada mais pelo pânico que pela racionalidade.

E é esse pânico que permite explicar como os maiores contratos públicos de sempre – com gastos bilionários – fossem feitos à margem das mais elementares regras de transparência, aquelas pelas quais qualquer autarca é ‘fuzilado’ se falhar a ela com qualquer soma irrisória.

Passado o pânico, e como vimos a semana passada, já nem na China se consegue manter a população agrilhoada ao covidismo, persiste, no entanto, a má consciência do comum dos cidadãos, que sabe que com o seu silêncio ou com a sua voz caucionou a lógica da histeria colectiva que permitiu o negócio do século sem que as mais elementares regras de transparência fossem respeitadas.

O imbróglio do covidegate vai por isso muito para além dos negócios da família Van der Leyen a que Ullens faz referência. O problema essencial com que estamos confrontados é o da desinformação, que atingiu níveis nunca vistos no Covidegate.

Estou convencido que foi a concentração e controlo da informação por um oligopólio de empresas tecnológicas, todas elas directa ou indirectamente ligadas ao conglomerado das farmacêuticas foi o factor decisivo na dimensão deste abuso de poder.

Se não olharmos de frente para o assunto, temo que venhamos a defrontar-nos com novos Covidegate tão ou mais dramáticos do que este.

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