Escrevo com memória de menina que conheceu o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) cedo, dentro de casa. Meu avô foi vereador pela legenda.
Diplomado em Farmácia e Veterinária, criou e aprovou duas leis para São Paulo das quais tenho orgulho: vacinação obrigatória contra a raiva nos cães, todo mês de agosto, e plantão obrigatório de farmácia aos domingos.
Não sei de outros feitos do meu avô, deixei de acompanhar quando comecei a perceber a ditadura ao redor e o papel maior do MDB, fundado em 1966 para fazer oposição ao regime militar. Até então, eu vivia em um mundo protegido.
Minha mãe, diretora de escola pública, foi solidária com professores perseguidos pelo regime, como o cientista social Maurício Tragtenberg, mas nunca se envolveu em luta. Cuidava de nós, família, professores, alunos. A sua luta era manter a escola que dirigia longe da repressão e da violência. Conseguiu, e não deve ter sido fácil: éramos cerca de três mil alunos.
Eu tinha uns 15 anos quando fui pela primeira vez à Praça da Sé, sozinha, participar de uma manifestação. A praça era o ponto de encontro dos que reivindicavam o fim do regime militar. Ouvi pela primeira vez o coro sem maestro e afinado da liberdade; soou como se fosse ensaiado todo dia (talvez fosse): “O povo unido jamais será vencido.”
Percebi que os gritos tinham poder, chegavam a criar uma bolha sonora de proteção em torno dos manifestantes; alguns policiais, segurando cães, avançavam dois passos, recuavam um na direção do povo. A ditadura estava no mesmo ritmo, dois passos para frente, um para trás.
Deixei a praça com a certeza de que quando a massa grita em uníssono, perde-se a noção de perigo, a alma é tomada pela urgência do ideal comum. Podemos vencer!
Em 1978, eu ganhei o direito ao primeiro voto, escolhi um candidato a deputado do MDB, meu avô (a essa altura, ele já havia sido deputado estadual). Mas, no último minuto, frente a frente com a urna, votei no Audálio Dantas, jornalista, também do MDB. Eu havia acabado de entrar na faculdade de jornalismo.
Meu candidato elegeu-se deputado federal, cumpriu o mandato e voltou à vida pública, sempre na luta pelos direitos humanos.
Eu nunca mais votei no MDB, que, com o fim do bipartidarismo, em 1980, se tornou PMDB, mas lutei ao lado do partido em grandes campanhas e conquistas populares, como a das “Diretas Já” (eleição de presidente pelo voto).
Nomes ilustres até hoje, como o do eterno senador do meu coração, Eduardo Suplicy, chegaram a integrar o MDB. Foi uma legenda de luta democrática, permitiu que candidatos comunistas se elegessem políticos. Participou ativamente da redação da nossa atual Constituição. Ajudou a construir nossa democracia e essa é a lástima.
Depois foi perdendo a “ideologia” (o que assume publicamente) e os grandes líderes, como Ulysses Guimarães que desapareceu (seu corpo nunca foi encontrado) na queda de um helicóptero, descaracterizou-se no rumo das coalizões com outros partidos. Na verdade, passou a representar, mais que a direita, os próprios interesses eleitoreiros.
E pessoais, a julgar pela quantidade de réus, julgados por corrupção, que tem em seu primeiro escalão, aliás, a maioria desses está agora no governo interino de Michel Temer, o desleal vice-presidente de Dilma Rousseff, um dos articuladores do seu impeachment (em processo).
Por isso a desfiliação do Audálio Dantas, hoje, é emblemática: o partido acabou. Faz muito tempo que o PMDB acabou, mas a desfiliação pública de Dantas e Fernando de Morais, também jornalista, no evento “Grito pela Democracia” é mais do que simbólica, é um ato de resistência.
A democracia resiste, grita e não é pelo Partido dos Trabalhadores, mas pelos direitos humanos, pela justiça social, pela pujança econômica que esse país pode e merece alcançar. Também pelo fim da corrupção e do retrocesso político, galopante na última semana, graças às canetadas de Temer que usurpam direitos adquiridos.
Um deles, nesta data, 21 de maio, conta Renato Rovai, foi restituído ao povo: o Ministério da Cultura.
É um bom começo. Grita mais, democracia!
Nota: a autora escreve em português do Brasil.